quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Cavar as marradas

Toda a terra era pouca para deitar as sementes do centeio.
As chamadas "terras direitas" de boa lavra e boa produção não eram suficientes para uma boa colheita de centeio traduzida em alqueires que se pudessem despejar nas robustas arcas e que mais tarde se trocava por farinha vinda dos lados da Freineda.
A produção do centeio e da batata eram a charneira do sustento das famílias.

Quando vinha a época das sementeiras, os agricultores, às dezenas, espalhavam-se por toda a folha, desde a galafura às trigueiras, passando pelas casas, descendo ao val da areia, torneando pelo cabeço do curvo até à enchara, passando pelas lapaçeiras, transpondo a ribeira desde o bico ao val do pombo, descendo para as lajas pintas e subindo às tapadas do cantinho, deslizando até à abilheira, saltando até ao barrôco cobrado, ranhadoiro em direcção à gorgolicha e à faia, subindo pelo val de vela, sem esquecer o cavaleiro e a trema, para não falar de outros lugares, onde meses mais tarde iriam ondular belas searas, produto do esforço, da dedicação e saber dos homens, aliados à força, à perseverança e ao sacrifício das suas juntas de vacas.
Se nas terras direitas havia o brio de deixar os regos rectilíneos, recordo o despique entre António Rocha e António do Zé Joaquim, na queimadinha, já nas terras mais pobres salpicadas de barrôcos, lajes mais ou menos acentuadas e outros obstáculos, não era possível dar azo à desenvoltura rectilínea, mas era necessário "arrumar" o mais possível com o arado até onde fosse possível fazer chegar a relha.
O barrôco era torneado pelo arado pela esquerda e pela direita, por vezes abriam-se regos ao travesso, mas era impossível lavrar com o arado de pau todos os cantinhos, que na gíria se apelidavam de marradas.
Enquanto o pai ou os irmãos mais velhos se agarravam ao arado atrás das vacas para proceder à sementeira extensiva, os putos, de enxada na mão, cavavam as marradas onde houvesse um centímetro de profundidade de terra em que o arado não chegasse para cobrir as sementes.
O resultado era o aproveitamento total dos terrenos, tirando-se deles o máximo de rendimento para ajudar no sustento da família.
Hoje quando começo a descer os val de barreiros e olho para as encostas da abelheira e tapadas do cantinho e vejo o mato que por ali prolifera questiono-me como foi possível esventrar aquelas terras e tirar dali as poisas de pão que, juntamente com as provenientes de outras paragens faziam o orgulho das mêdas que meses mais tarde se elevavam nas eiras do pradinho.
Ao meu pai, ao meu avô António Jerónimo e a todos os outros agricultores do Carvalhal presto aqui a minha homenagem ao seu esforço, à sua luta pela sobrevivência mas que, com dignidade souberam criar os seus filhos, transmitindo-lhe valores de respeito e de boa vivência em sociedade.

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