quarta-feira, 30 de abril de 2008

Dos Moinhos aos Castanheiros

Porque havia de ser assim?
Os outros juntavam-se à sombra da casa da tia Rita, jogavam à bola, à chona, faziam corridas com o arco, brincavam às escondidas, mas o mafarrico depois de almoçar, tinha que ir dormir a sesta para a casa do Alfeu.
Fechava os olhos, rebolava na cama, mas dormir era impossível.
Queria estar com eles, ter a vida deles, dormir quando eles dormiam, mas quando o pensamento deixava de voar e nos preparávamos para passar pelas brasas, lá vinham a Primavera ou o Joaquim Jerónimo, recordar-nos que tínhamos pela frente mais uma noite em branco.
- Garotos, são horas de deitar o gado fora, diziam-nos.
Final de tarde, o calor começava a dissipar-se e já o rebanho, enrolado numa nuvem de poeira, nos seguia em direcção ao Ranhadoiro.
As horas iam passando, a lua já tinha aparecido para os lados de Almeida e viajava lentamente na direcção da Atalaia. O Farrusco depois de ter acossado uma raposa desde a Gorgolicha em direcção ao Vale de Vela, tinha regressado para se manter de atalaia não muito afastado do rebanho, em posição estratégica de defesa que ele, melhor que qualquer outro, sabia ser a adequada.
O Manel ia à frente e eu encarregava-me de, na retagurada, acautelar que nenhuma ficasse para trás, por descuido ou por tresmalho
Chegados à ribeira, junto aos moinhos do Ti Zé Samuel, recebi ordens para vigiar do lado de Valverde para que as ovelhas não fossem para as Olgas do lado de lá.
Pela posição dos sete estrelos, o melhor e único relógio que possuíamos, devia ser cerca da meia noite. O cansaço invadiu o corpo e, contra as ordens do mais velho, que sistematicamente me avisava que não me podia deixar dormir, enrolei-me no chão, na esperança de que seria por escassos instantes e que ele nunca chegaria a saber.
O malvado tinha-me vencido.
Acordo sobressaltado, levanto-me num ápice, olho em todas as direcções e não enxergo, nem sinto a campainha de qualquer ovelha.
Corro em direcção ao areal que estava por cima do açude, paro e volto a confirmar. Estou só. Ovelhas, nem vê-las, grito pelo Manel e ninguém me responde. O sacana tinha-me deixado sozinho. Roguei-lhe uma praga, chamei-lhe mentalmente nomes bonitos que não ouso aqui escrever; nem queria acreditar, mas era verdade.
Sabia qual era o trajecto e tinha esperança que estivessem próximos, até porque, pensava eu, não teria fechado os olhos mais do que cinco minutos.
Ribeira acima voava sobre o areal, aqui e ali chapinhava algumas águas que ainda teimavam em não se esconder por debaixo da areia.
Tinha transposto as Olgas do Porto, mas confiava que a todo o momento os estaria a alcançar. Por vezes parava por breves instantes para tentar ouvir as campainhas e, nada; só restava continuar a correr.
Ponte das Poldras. Deixei a ribeira; voltei a gritar desesperadamente pelo Manel e, nada; nenhum som, nem um ruído; ao menos que sentisse o Farrusco ladrar.
Tinha duas hipóteses, Picarão acima em direcção ao Carvalhal ou subir as Lapaceiras em direcção à Cozinha do Azinhal.
Se escolhesse a primeira, sem dúvida mais fácil e menos medonha, corria o risco de no dia seguinte levar uma trepa do Manel, o pai e a mãe iam saber que o malandro me tinha deixado sozinho. Escolher a segunda, significava um aperto de coração muito grande. Sabia que a encosta das Lapaceiras era lugar frequentado pelos nossos maiores inimigos.
Que fazer?
Julgo que mais por medo da mão leve e do chuto fácil do Manel do que a consciência que nada me poderia acontecer ao transpor as moitas em direcção às Tapadas do Lobo; a verdade é que optei por subir as Lapaceiras.
Qualquer sombra ou algum ruído produzido por aves nocturnas gelavam-me o sangue, para logo de seguida voltar a correr desalmadamente, sempre na esperança de que estaria quase a alcançá-los; mas agora a partir da Ponte das Poldras, nem mais um grito, nem mais um apelo; não fosse ouvido por alguma alcateia que se passeasse por aquelas paragens.
Alcançada a Cozinha do Azinhal, ainda que Manel e ovelhas não visse, já respirava de alívio; tinha passado a zona de maior risco e dali até à malhada, o campo era mais aberto e menos tenebroso.
Continuei a correr caminho fora, do Barroco do Pendão em direcção à casa do Joaquim Marques, virei à esquerda pelo caminho em direcção aos Noivos até que, completamente exausto, entro na Tapada dos Castanheiros; mais cem metros à frente as últimas ovelhas davam entrada na malhada.
O Manel, como era hábito e obrigatório procedia à sua contagem.
Ainda tive uma leve esperança de poder ocultar o que se tinha passado aproximando-me da malhada atrás das últimas ovelhas, esperando que ele sempre tivesse pensado que eu tinha vindo atrás do rebanho; mas não passou disso mesmo, já que quando me aproximei, ele disse-me:
- Podias ter lá ficado a dormir toda a noite.
Fiquei-lhe com uma gana dos diabos; só não me botei a ele porque sabia que me enchalmava o corpo. Na verdade, que podia fazer um mafarrico de 9 ou 10 anos contra um "matulão" de 15 ou 16 anos, por sinal, useiro e vezeiro em impor as suas ideias junto dos irmãos mais novos com o argumento da chapada e do pontapé?
Depois do acontecido, fiquei a perceber melhor a ordem em dormir a cesta; o que nunca aceitei foi a infelicidade de não poder ter a vida dos outros da minha idade, que enquanto eu subia as Lapaceiras, cerca das quatro da manhã, borrado de medo, eles dormiam sossegadamente nas suas casas.
Será que o gosto de hoje dormir a sesta servirá para compensar as sestas que devia ter dormido na infância?
De uma coisa eu sei. Ainda que privilegiado entre os irmãos, não deixo de recordar com sentido de revolta a necessidade que havia de exploração do trabalho infantil naquela época.



sábado, 26 de abril de 2008

Os mantanas

Os garotos da terra andavam eufóricos.
As irmãs do Zé João, cabeleireiras no Porto, tinham-lhe dado uma bola de "catchu".
Que pinta de bola... era daquelas que já tinham câmara de ar.
Era tempo de luar e como durante o dia todos andavam ocupados na faina agrícola, só lhes restava aproveitarem o luar e fazer umas jogatanas depois da ceia, entre as 10 h e a meia noite.
Tudo combinado. Com o máximo de descrição, a concentração deveria fazer-se junto ao chafariz do cimo do povo e dali, em bando, partiríamos para a escola, onde nos esperava uma grande partida futebolística na estreia da bola de catchu.
Os garotos sabiam que o risco era grande, mas nenhum queria perder a hipótese de participar naquele jogo com bola mesmo a sério, daquelas que sabíamos que existiam , mas que só em sonhos as visualizávamos.
Mal acabei de cear, raspa-te, antes que se faça tarde.
Já na rua, outros se juntaram e toca de nos dirigirmos ao chafariz do cimo do lugar.
Tínhamos já transposto o Largo do Cimo do Lugar, rua a cima, quando nos cruzámos com o António Paulo que deveria vir das cortes das Paijoanas, onde, se bem me recordo, na época o Manuel Amaral guardava as vacas.
- Boa noite Tónio.
Boa noite rapaziada, respondeu amavelmente, o Tónio Paulo.
Oh Tónio, nós vamos jogar à bola para a escola, não digas nada aos outros, está bem?
Estejam descansados, eu não digo nada...
O Tónio era diferente da maioria dos outros rapazes. Nunca participava nos ataques que eles nos faziam quando jogávamos às escondidas junto ao forno ou no adro da igreja, razão bastante e suficiente para ficarmos descansados. Era um tipo bestial, pensávamos nós.
Concentração feita, rapidamente chegámos à escola. A constituição das equipas obedecia geralmente a dois ou três critérios; a saber, os de baixo contra os de cima, o Benfica contra o Sporting ou então encarregavam-se dois de fazer a escolha alternada dos elementos que gostavam de ver na sua equipa.
Já não recordo qual tenha sido o critério, mas a bola já rolava há algum tempo, com vários golos de parte a parte, quando o Manuel Américo, talvez mais atento ao que se passava fora do campo do que a uma boa jogada da sua equipa, grita:
- É pá, É pá, vi a parede do Pedro a mexer...
- És parvo, deves andar com o medo da tua sombra, foi a resposta do "Carvalho" que preocupado na segurança das suas redes se recusava aceitar que alguém nos viesse estragar a festa.
-Olha, estão ali, eu vi, eu vi, gritava assustado o Manel Américo. Vi passar um atrás daquela parede...
Ainda mal tinha acabado e já se ouviam estridentes assobios, vindos dos mais diversos lados; da vinha do Joaquim Oliveira, do nabal, da figueira do Pedro, do caminho que dava acesso à escola.
Eram os malditos mantanas que nos cercavam e se preparavam para o ataque.
Afinal o "Méquinho" tinha razão; as paredes não se moviam, mas escondiam atrás de si os tenebrosos mantanas que vinham para nos arrear.
Com assobios estridentes, ecoando no silêncio da noite, os gajos davam sinais entre si, de que tinha chegado o momento do ataque.
À pernas para que vos quero, há que dar às vila Diogo, e cada um pensou logo em por-se a salvo.
O cerco era total; se nos dirigíamos ao portão da escola aí estavam vários mantanas encostados ao muro, o nabal do Joaquim Oliveira era evidente que estava minado, quem correu em direcção da figueira do Pedro, depressa se arrependeu, porque as vergastadas provinham de todos os lados...
Salve-se quem puder.
Todos sabíamos as regras e enquanto não conseguíssemos entrar numa casa, a todo o momento estávamos sujeitos às varadas daqueles patrões da noite.
Cada um cuidou de si e, não raro, ouviam-se gritos de dor, vindas do meio das vinhas.
A casa do Zé João era o posto de acolhimento mais próximo, onde depois de algumas quedas no meio do vinhedo, todos ansiavam chegar.
Já alguns de nós estavam a salvo na varanda, vendo alguns mantanas que circulavam na vinha do Zé Júlio, hoje do Francisco Gil, quando de repente o Méquinho, que se preparava para saltar a parede da vinha para o quintal do Zé João, gritou:
-Já estou salvo, já estou salvo.
Palavras não eram ditas e dois vultos se levantam na sua direcção, houve-se o zumbido das "vergas" e um grito alucinante de dor.
- Ai ai, que me matam...
Mais duas ou três varadas e lá conseguiu o Manel Américo por-se a salvo no quintal.
- Filhos da puta, cabrões, ide bater pró ... carvalho, eram algumas das expressões, por nós utilizadas, já no recato da varanda do Tónio João.
Eles, escondidos por baixo das mantas, e alguns pavoneavam-se, em frente ,na rua em sinal de superioridade, como se fossem os donos da aldeia.
O tempo passava, a noite já ia longa e não havia meio daqueles gajos irem embora, até que no meio dos garotos se houve a voz de um, que pela idade e porte físico, já se considerava tão importante como alguns dos mantanas. Só estava entre os garotos porque ainda não tinha pago o vinho.
Em tom de ameaça e de peito feito, gritou para o exterior:
- Eu vou para minha casa e se algum filho da puta me tocar parto-lhe os cornos.
Confiante no seu cabedal, desce as escadas e toca de caminhar na rua. Ao aproximar-se da casa do ti Júlio, um mantana barra-lhe o caminho disposto a zurrar-lhe o corpo, mas o Tónio do Joaquim Jerónimo, por sinal meu irmão, não se intimida e, vai daí saca a vara ao mantana e toca de o malhar, até que, os outros ao verem um dos seus soldados a ser arreado vêm em seu socorro.
Grande refrega se dá na rua, com o Tónio a enfrentá-los heroicamente, dando e levando, até que um dos mantanas, ainda mais agressivo, arreia fortemente no Tónio.
Tratava-se, segundo rezavam as crónicas da época, do Manel Jerónimo que, para manter a tradição, não se coibiu de arrear no irmão em defesa, do ainda caloiro, mantana Zé Paulo do Manel Prazeres.
Os garotos sempre ficaram na dúvida se afinal o bondoso António Paulo não terá ido à Casa do Povo e aí os tenha traído junto dos seus pares, que felizes pela notícia, logo trataram de ir buscar as mantas para, alegremente, virem malhar nos nossos corpos franzinos.


Para o leitor menos familiarizado, aqui vai alguma informação.
Mantana - nome dado a cada um dos rapazes da aldeia que, em grupo e, cobertos por mantas circulavam à noite pelas ruas com o objectivo de bater nos garotos que se aventurassem sair de casa depois de cear (jantar).

A distinção entre garotos e rapazes fazia-se pele chamada "pagadela do vinho", ritual a que se candidatavam os jovens entre os 16 e os 18 anos e, a partir da qual eram considerados rapazes de pleno direito.

Os garotos da aldeia estavam proibidos de sair de casa depois da ceia.
No tempo da reza do terço podiam ir à igreja e logo que acabasse a novela deviam acompanhar as mães até à casa, sob pena de levarem umas verdascadas desses mantanas.

Era o jogo do gato e do rato; quantas vezes fomos atacados, mas a vontade de brincar na rua à noite nunca nos inibiu de correr o risco de sermos apanhados. Na altura, qualquer garoto da aldeia era como uma gazela que, de pés calejados, corria mais do que hoje correm os atletas de alta competição, com a devida vénia, claro está; e a noite, sem iluminação pública, era um ambiente que nos escondia e protegia.


quinta-feira, 24 de abril de 2008

Foi há 34 anos.

Remetente
Laboratório Nacional de Engenharia Civil.
A ansiedade era imensa e num ápice rasguei o envelope para devorar o seu conteúdo.
Os olhos brilharam e o coração transbordou de alegria. Tinha sido um dos escolhidos para ir trabalhar naquela, que à época, era uma das instituições mais prestigiadas de Portugal. O ordenado, quando comparado com os magros 1200$00 que recebia nos Serviços Municipalizados, era aliciante; 3.600$00 (€: 18,00)
A noite foi longa e o pensamento soprava em todas as direcções. Ia finalmente conhecer Lisboa, pensava nos seus bairros típicos, nas boémias, mas também nas responsabilidades. Será que ia conseguir? Que trabalho me estaria destinado?
O corpo contorcia-se na cama, ensonado, mas com muito desejo que chegasse o dia 29, data em que me havia de apresentar ao serviço.
Logo pela manhã desloquei-me aos Serviços Municipalizados para informar a minha chefia da sorte grande que me tinha saído.
Quando cheguei ao serviço já havia alvoroço nas águas furtadas do palacete.
Passa-se alguma coisa em Lisboa, ...parece que houve um golpe de Estado...
As perguntas corriam velozes entre nós, nem sempre as respostas chegavam claras.
Tudo era confusão, ninguém estava disposto a falar em trabalho. No sector das vistorias às instalações eléctricas a que eu pertencia, ninguém se dignou pegar nas folhas de vistoria e sair para a rua para chumbar mais umas quantas instalações eléctricas de cordão. O anafado chefe César, natural do Ferro, trocava impressões com o chefe da calibração dos contadores, senhor Calado.
A coisa parecia ser séria e já o Engenheiro Gabriel se convencia que a rapaziada, além de não estar preocupada com o serviço, também pouco se importava com a sua sempre temida presença.
As informações davam sinais de que os alfacinhas já se passeavam euforicamente pelas ruas e por isso também nós na Covilhã tínhamos o direito de não fazer nada nesse dia.
Confuso, preocupado, mas lá consegui dizer ao chefe que a partir daquele dia já não voltava a trabalhar nos Serviços.
O Senhor César, de face muito rosada, ouviu e no final disse-me:
- Oh homem você vai para Lisboa e não tem medo do que se está a passar por lá?
Que medo poderia ter um jovem de 19 anos que estava farto de aturar o carrasco do Eng. Gabriel?
Incertezas tinha muitas, mas a ânsia de ir trabalhar para Lisboa e para o conceituado Laboratório Nacional de Engenharia Civil superava tudo e, jamais vacilei na vontade de partir.
Era necessário deslocar-me a Pinhel para conseguir um certificado do Curso Industrial que me deveria acompanhar até ao novo emprego.
Dia 26 e 27 foram passados em Pinhel e no dia 28 tomo o comboio da Beira Baixa rumo a Santa Apolónia.
Foram longas horas de viagem. Deu para meditar muito; as asneiras que tinha feito nos últimos dois anos em que os estudos foram subalternizados relativamente à vida boémia. Os colegas que tinha tido. As diferenças sociais notórias entre colegas oriundos de quadrantes bem distanciados, desde o simples aldeão, como eu, até ao filho do industrial que se passeava de carro desportivo, passando pelos filhos dos pequenos comerciantes; de tudo conheci naquela cidade.
Quanto tinha sido diferente na pequena cidade de Pinhel onde os laços de amizade eram mais fortes porque nos sentíamos todos como irmãos, ao passo que na Covilhã uns eram filhos - os ditos ricos, os outros os enteados - os pobres, que muitas vezes não tinham uns tostões para jogar uma partida de bilhar no "Sporting da Covilhã" ou tomar uma bica no Montalto.
A lentidão do comboio sempre permitia que fosse projectando uma nova vida. Sonhava que ia ter dinheiro para todo o mês; o que não acontecia com o magro salário recebido até ali.
E se quando lá chegasse andassem todos aos tiros? Que poderia eu fazer? Se não pudesse trabalhar, como poderia sobreviver?
Finalmente os altifalantes anunciam Santa Apolónia.
Desço do comboio e, feito autómato, sigo os outros que em correria se dirigiam para o exterior.
Dei o primeiro passo no degrau de saída da estação. Paro atónito, vejo muitos autocarros, do lado esquerdo uma imensa avenida pejada de carros que correndo, parecia que iam embater uns nos outros, sem perceber o que significava circular em dois sentidos, em mais de uma fila para cada lado.
O coração tremeu, a angústia toma conta de mim e choro interiormente.
Quero ir para Campo de Ourique, Rua Infantaria 16, à procura do Antero Ramos, antigo companheiro de Escola em Pinhel.
Lentamente o 9 dirige-se para a Praça do Comércio, sobe a Av. da Liberdade, contorna o Rato, dirige-se à Estrela e quando chega à Saraiva de Carvalho, o revisor informa-me que cheguei ao destino. Sentia-me pequenino, destroçado, naquela grande cidade.
Mala às costas dirijo-me à Infantaria 16, toco à campainha do segundo andar de um número que já não recordo.
Espreita uma velhinha e, meio engasgado, pergunto se vive ali o Antero de Almeida Ramos.
- Não. Já morou, mas foi-se embora à cerca de 2 meses, respondeu a velhinha.
Mais uma vez fico desolado.
Como poderei agora desenrascar-me se confiava encontrar o Ramos e afinal já não está?
Passaram uns segundos e reagi, em boa hora, porque a velhinha tinha um quartinho muito pequenino onde podia ficar.
À noite conheci o Cardoso, outro hospede que trabalhava na restauração e o neto da velhinha, que mais tarde percebi ser um Troteskista a atirar para o anarca, que não querendo fazer nada, lá vivia a custa da vóvó, os quais me explicaram que transportes devia apanhar para chegar ao Laboratório no dia seguinte.
Senti-me mais animado, sempre podia conviver com mais dois jovens que, embora diferentes, me podiam ser muito úteis.
Dia 29 de Abril, depois de admirar a noite que se vive no metro, desemboco na Praça de Alvalade e, passado um quarto de hora franqueio os portões do Laboratório Nacional de Engenharia Civil.
Dirijo-me ao Departamento de Pessoal onde sou recebido por uma senhora simpatiquíssima, a Fernanda, esposa do Técnico Experimentador Neves, que ao fim de algumas explicações, me diz:
-Apresenta-se num dia muito especial. Hoje é a primeira RGA (Reunião Geral de Trabalhadores).
14.30 h um mar de gente saindo dos mais diversos edifícios que compõem o complexo do LNEC e, como formigas, dirigem-se ao edifício central (CDI).
Entro numa sala enorme com umas cadeiras do mais confortável que se conhecia na época. Os corredores e galerias do anfiteatro nº 1 estavam apinhados de gente.
Começaram as intervenções e depressa me apercebi que tinha começado a caça aos pides e bufos que ainda estavam no LNEC.
Os manos Gonçalves Henriques, Jorge Moiano, António Nunes Correia, hoje Ministro, tirocinantes de Engenharia do Instituto Superior Técnico na altura, Dr Carlos Morais, Eng. Bau e Mário Lino, também ele actualmente Ministro, foram os animadores dum festim em que se gritava "Morte à PIDE e a quem a apoiar..."
Estavam decorridos os primeiros dias de um período histórico de relevante importância para o futuro da sociedade portuguesa.
Cerca de um ou dois meses depois vi na televisão, como destacado dirigente local do Partido Socialista na Covilhã, o Eng. Gabriel; o tal carrasco de que me tinha livrado e pensei:
- Com indivíduos como este jamais serei do Partido Socialista.
O certo é que só por volta dos finais dos anos 80 comecei a gostar do PS; se calhar tinha interiorizado que esse fascista do Gabriel, lá nos confins da Covilhã, já tinha sido desmascarado.

domingo, 20 de abril de 2008

Quatro tostões

Passeava eu os livros da quarta classe e certo dia tinha comigo quatro tostões.
Para os mais jovens informo que representa a módica quantia de €: 0,002, o que significa menos do que a moeda de menor valor (um cêntimo) hoje em circulação. Embora não me recorde da origem de tamanha fortuna, não garanto até que os tenha soropiado ao já vazio cofre dos meus pais, ou algum familiar que mos possa ter dado. O certo é que andava eu todo inchado na escola a gabar-me de ser possuidor de tamanha riqueza, até que outro companheiro de escola, um ou dois anos mais velho, mas da minha turma, de nome Manuel Américo, se apresenta disposto a fazer um negócio comigo.
O Américo mostra-me uma carteira e diz-me:
-Vendo-te esta carteira, em estado novo, por quatro tostões.
Olho para o objecto, vasculho as suas entranhas e, não havia dúvida, ali estava uma bela carteira, igualzinha a tantas outras que os homens crescidos usavam para guardar as moedas e notas que serviam para comprar as cervejas na loja do tio Alípio e da tia Palmira.
O Manuel Américo colocou-me um grave dilema.
Bem tentei baixar o preço, mas o "espertalhão", porque sabia o real valor do seu objecto ou porque sabia que eu tinha nos bolsos os quatro tostões e, a todo o custo mos queria sacar, a verdade é que não cedia no preço.
A minha cabeça fazia contas à vida e o maganão continuava a insistir:
-É pegar ou largar...
Ora porra, ter dinheiro no bolso eu já sabia o que era; aqui estava a oportunidade de ser proprietário de uma carteira e não ia desperdiçar, vai daí, negócio feito.
Paguei o preço da coisa e o Américo entregou-me a carteira.
Confesso que por alguns minutos fiquei muito feliz, mas depois começei a pensar e chamei-me mil vezes estúpido.
Afinal para que queria eu uma carteira se tinha ficado sem dinheiro?
Pensei:
- Quantas gasosas e laranjadas eu podia ter comprado na loja do tio Alípio e, concluí com os meus botões:
- Que merda de negócio eu fiz. Aquele gajo nunca mais me volta a enganar...
Não sei o que terá pensado o meu companheiro de escola, mas nunca mais quis fazer negócios com ele.
Afinal, ele tinha levado a desfazer-me de uma fortuna de que tanto me orgulhava de ser possuidor - quatro tostões.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

O Lamp(i)ão

Há três ou quatro décadas a aldeia regurgitava de gente e obviamente a terra, qual manta de farrapos, continuava retalhada em pequenas belgas ou hortas. Normalmente só podiam ser amanhadas à força de trabalho braçal e por isso, havia na aldeia alguns elementos que eram chamados à jorna. Eram os jornaleiros. Era um trabalho pesado e de sol a sol, mas para alguns lares, apesar de mal pago , era uma benesse para equilibrar as parcas finanças do clã familiar. Além disso havia uma vertente para o trabalhador e que era substancialmente positivo para que este aceitasse este trabalho. É que nestes dias a “patroa” tratava sempre com carinho especial o trabalhador com o rancho melhorado e o barrico encontrava-se sempre à mão de semear…
Feito este pequeno enquadramento, vamos então à história!...
Ora, o meu vizinho, uma estampa de homem , que tinha tanto de corpulência como de simplicidade, com voz grossa e pachorrenta, regressava a casa já noite cerrada. Após uma ceia bem regada e já com um grãozinho na asa, antes de entrar em casa, lembrou-se num repente de ir à corte ver os seus animais, pois nesse dia ainda não lhes tinha posto a vista em cima. Chegado à porta da corte, não é que por diabruras do demo, o maldito cravelho da porta não se encontrava no sitio do costume. Há coisas do diabo!...pensou.. Ele apalpava o batente mais a cima, mais abaixo e nada… . A paciência começou a esgotar-se, a voz misturada de impropérios começou a alterar-se e de repente não esteve com meias medidas: Joelhada na porta e pimba, foi tudo dentro. A porta escancarou-se e o dono projectado pelo desequilíbrio instável caiu desamparado no meio da corte. Perante tamanho assalto as vacas assustaram-se e contorciam-se no exíguo espaço da corte tentando ao repelões soltar-se das prisões da manjedoura. A burra, perante tamanha invasão não esteve com meias medidas e começa a disparar valentes coices, que até faziam fumo!...
Com este turbilhão montado e perante tamanho caos, o bom do vizinho não teve outro remédio se não chamar por socorro.
- Oh mulher!... Vem cá depressa e trás o lampião, que a burra deu dois coices e não sei se foi em mim se foi na parede!...
Com tal burburinho, acode rápido a mulher e com a luz mortiça que emanava do velho e sujo lampião a petróleo, deparou com o marido todo encolhido junto à manjedoura da burra, mais quietinho, que folhas de árvore em tarde de acalmia.
Solícita a mulher, ia procurar o que se tinha passado, mas logo o homem ataca:
- Oh mulher de um raio, tira-me daqui, mas apaga-me essa luz forte do lampião, porque para além de me cegares com a luz, se a burra me reconhece, amanhã malha-me com as costelas no chão!...

Autor - Joaquim Amaral

Votos de boa estadia


No dia 15, em missão de serviço, partiu para Cabul, Afeganistão, o Major de Engenharia João Paulo Oliveira.
A missão prolonga-se pelo período de 6 meses.
Votos de boa estadia no cumprimento do dever é o que desejamos a este grande amigo do Carvalhal.

terça-feira, 15 de abril de 2008

De Corroios até ao Carvalhal


A traça do passado esconde o conforto do presente

De Cascais até ao Carvalhal


Recuperação e restauro.
Um exemplo de renovação no Carvalhal.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

De Cascais até ao Carvalhal




Os proprietários gostam do Carvalhal

domingo, 13 de abril de 2008

Quem dizimou a horta?

No povoado não se falava noutra coisa.
A horta da Moita Vermelha do Francisco Aurélio tinha sido arrasada por uma piara de gado na noite anterior.
O Francisco Aurélio era para os pastores uma pessoa temível porque não permitia que entrassem nas suas terras para pastorear o rebanho. Qualquer descuido e lá estava ele a fazer pagar a negligência ou a ousadia de lhe terem comido uns figos ou a bolota caída das carrascas. Os jovens pastores muitas vezes comentavam entre si tempos passados em que também ele tinha tido rebanho e por vezes também este se tresmalhava, por "descuido" e lá se ia a erva de um qualquer lameiro que estava guardado para feno pelo seu proprietário.
Pois bem, passado era passado e nada de perdoar; mesmo que o prejuízo fosse desprezível.
Desta vez a razia tinha sido grande. A horta da Moita Vermelha tinha sido dizimada. Incúria ou acto premeditado?
Não se sabe, mas que o homem tinha razão para andar esbaforido não restava dúvidas a ninguém.
Quem terá sido?
Nenhum pastor se acusava e na boca do lesado já todos eram apelidados de ladrões.
Havia concerteza um pastor com as orelhas a arder; mas daí todos comerem pela mesma bitola, era uma ofensa que muitos não estavam para suportar; vai daí, alguém que nada devendo também nada temia propôs um plano para tentar descobrir o culpado.
A estratégia era simples.
Em dia combinado, todos os rebanhos da aldeia deveriam passar junto à horta da Moita Vermelha e aí estariam testemunhas para analisarem o comportamento dos rebanhos quando estivessem nas proximidades da horta.
Todos aderiram e naturalmente também o responsável da razia cometida.
Que poderia ele fazer?
Negar-se à passagem "probatória" seria a sua incriminação; só tinha que confiar na falta de "memória" das suas ovelhas.
Era a justiça popular a funcionar em pleno, de forma empírica, sem utilização de técnicas jurídico processuais.
Era a defesa da honra individual que haveria de encontrar o culpado. Este por sua vez, também não queria ficar debaixo de qualquer dedo acusador e arriscou.
No dia marcado mais de uma dúzia de rebanhos se encaminharam compassadamente para o local do crime. Subiam o caminho da gateira e entravam nas terras da Moita Vermelha; aí o pastor ficava proibido de orientar o rebanho.
Com um intervalo de cerca de 10 minutos todos foram passando. A monotonia era grande. Nenhum rebanho parecia dar sinais de conhecer a horta, até que chegou um que mal o pastor o deixou à deriva, foi vê-las numa correria louca na sua direcção. O pastor ficou negro de raiva. Correu de imediato para as controlar não fossem elas acabar com o que restava.
Ingénuas, não sabiam que estavam a ser vigiadas e o seu comportamento estava a incriminar o dono. Passaram os restantes e mais nenhum rebanho se apercebeu que a horta estava próxima.
Não sei quanto teve que pagar o coitado; mas aos valores da época terá sido uma fortuna.
Também não sei se terá sido um descuido ou uma qualquer vingança; o que é certo é que mais uma vez o Francisco Aurélio, aproveitando a defesa da honra dos outros pastores, conseguiu ver-se ressarcido do prejuízo que tinha sofrido.
Claro que se o Francisco Aurélio tivesse ido consultar o Gomes Canotilho, o Manuel Vilhena ou qualquer outro dos meus pares com escritório em Pinhel teria pago a consulta e teria ficado com o prejuízo, porque em juízo o caso seria de difícil prova.
Recordo alguns dos pastores da época:
- Manuel do Joaquim Jerónimo, António Sebastião, Vito do José Amaral, Manuel do José Joaquim, Luís do José Jaime, Manuel Babado irmão do António João, José Monteiro da Quinta da Sobreira, Joaquim do Manuel Pereira da Quinta da Sarça, António Rebelo do Manuel Rebelo e outros que por ora não me vêm à memória.
Afinal este episódio ocorreu à cerca de 45 anos.

Carvalhal

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Rumo ao Seminário

Era madrugada. Uma ligeira aragem varria a estação. O povinho já se espalhava pela cais, quando se houve um rugido vindo do lado esquerdo, para logo de seguida romper triunfal uma enorme máquina negra que vomitava um fumo intenso, mais negro que a lã da saudosa andorinha, uma das mais belas do rebanho. A máquina passa e atrás de si seguem-se-lhe diversas carruagens.
Malas e sacas de batatas acomodadas, vou à janela e, num misto de alegria e tristeza, sinto-lhe o deslizar vagaroso e com dois estridentes assobios despede-se da gare. Mais umas fumarolas e já ele se embala rumo a Celorico da Beira.
Tudo era novidade.
Uma carruagem ampla com bancos corridos de madeira, ao fundo umas casotas interiores que na porta exibiam as letras WC.
Aqui é a casa de banho, disse ela, com ar de guia e mestre em viagens.
Não disse nada, mas recordei a imensidão da paisagem que se escondia atrás de um qualquer barroco na aldeia e o cubículo que me estava reservado quando a necessidade apertasse.
Ao menos descobri-lhe uma vantagem. Já não tinha que procurar umas ervas...
Ora sentado, ora de pé, com o gargalete fora da carruagem lá me ia deslumbrado com a paisagem.
Tudo era novidade.
As pontes, os túneis que surgiam do nada para logo voltar a ser dia, as vilas e aldeias nunca antes vistas.
Chanca, chanc, chanca, chanc, chanca, chanc, mais um silvo e outra estação que ficava para trás, até que, passadas algumas horas, ele queda junto a um pontão cumprido.
Era um emaranhado de linhas, locomotivas que se moviam de um lado para o outro, mais adiante passa um comboio veloz que não pára. O nome estava bem gravado na estação. Pampilhosa.
Enorme, tudo era tão diferente do meu mundo.
Gente que corria, gente que carregava malas enormes e se arrastava pelos cais e já o altifalante berrava:
-Atenção senhores passageiros, comboio para o Porto, linha 6, parte às 12.30 h.
E repetia:
-Atenção senhores passageiros, comboio para o Porto, linha 6, parte às 12.30 h
Ela, sempre sorridente, dizia-me:
-Vamos, vamos, está quase a partir...
Exaustos pela mudança, mas agora melhor sentados.
Era linda a carruagem, bem compartimentada, de bancos verdes macios, que depressa fizeram esquecer o comboio da Beira Alta.
Agora podia apreciar o que já tinha aprendido nos bancos da escola primária.
Ali estava a linha do norte, electrificada.
Partiu veloz e passado pouco tempo estava a apreciar os campos de milho infindáveis.
Tudo era verde.
Não se viam carrascas e os barrocos só os encontrava quando interiorizava e virava o pensamento para tudo o que ficava para trás - os pais, irmãos, amigos, o farrusco, a princesa, a andorinha, a doninha e tantas outras imagens que me faziam crescer um sentimento de angústia, que por vezes se escondia para dar lugar ao antídoto.
Afinal todos, pais e irmãos, uniram vontades e permitiram que o garoto franzino se libertasse daquele desterro e fosse aprender, mais e mais, para um dia mais tarde não ter que continuar a dormir com as ovelhas ao relento ou na corte das vacas, numa tarimba abafada.
Eles mereciam e merecem toda a minha gratidão.
Do lado esquerdo surgia o imenso mar que só em pensamentos o conhecia.
Tudo era lindo, tudo encantava.
A estação das Devesas já ficava para traz e eis que surge, imponente, a ponte D. Maria
Quase que parecia dormir, tal era a lentidão com que estava a atravessar a ponte em direcção ao Porto. Olhava para o Douro, a ponte D. Luis, a ponte da Arrábida, o Palácio Cristal e, pensava:
- Sou tão pequenino.
O meu Carvalhal é tão pequenino.
A Ribeira das Cabras, mesmo em tempo de cheia, é tão pequenina.
E eu que achava a cidade de Pinhel tão grande...
Depois de ter parado uns minutos em Campanhã, entra no escuro do túnel para, passado pouco tempo, se quedar finalmente na estação de S. Bento.
- Chegámos, disse ela.
E ainda mal tínhamos descido as escadas e já se aproximava de nós o António Gil que sempre sorridente e galhofeiro nos deu um grande abraço.
Transpusemos as portas da estação e vi um mundo de outro mundo. Os carros, os eléctricos, os autocarros, peões correndo pelas ruas.
Onde me vim meter, pensava eu com os meus botões e, já o António Gil me puxava pela mão para subir para o autocarro.
Depressa chegámos à rua da Boavista, calcorreamos o passeio da R. Barão de Forrester, franqueámos um enorme portão e em frente surgiu um grande largo com muitas garagens, tendo no seu lado esquerdo uma casinha, pequena, mas acolhedora. Ali estava a Maria Adelaide e o seu bébé Joaquim Gil, hoje mais conhecido pelo tripeiro e fanático do F.C.P.
Ela, que me acompanhou na viagem, jovem bonita, que já a algum tempo vivia no Porto aprendendo as artes de cabeleireira, era a Maria Amélia do António João, que tendo estado alguns dias no Carvalhal, foi a minha âncora e a minha protectora no caminho para o mundo da civilização.
O destino era o seminário que me esperava dali a dois ou três dias e onde passei três anos.

terça-feira, 8 de abril de 2008

A malha

O ritual repetia-se todos os anos. A malhadeira assentava arraiais em todas as eiras do povoado. Nada ficava por malhar. Os mangualdes faziam parte do passado e tinham dado lugar a essa máquina alta, imponente, que quando bem alimentada, era um regalo vê-la parir sacos de centeio com a mêda a desfazer-se.
O sol ainda não espreitava para os lados de Almeida e já a eira do pradinho se enchia de actores prontos a entrar em cena num espectáculo de plateia vazia.
Todos conheciam o papel a desempenhar.
O motor, que ao inicio mais parecia uma velha com dores de barriga a libertar gases incontidos, cuspia do escape negras fumarolas, para depois se estabilizar num ritmo sincronizado que, através da correia ligada à poli, fazia vibrar toda a malhadeira pronta a receber os molhos de centeio, que devorava ao ritmo imposto pela cadeia humana capaz de a alimentar.
O Zé Paulo, que mais tarde se encarregou por muitos anos da defesa do Presidente Mário Soares, gritava do alto:
- Venha pão, venha pão...
Os garotos, ágeis, mas de pouco músculo, empoleirados em cima da mêda, encarregavam-se de atirar molhos para o chão junto à malhadeira. Ali, num ritmo acelerado, pelo menos mais dois actores se encarregavam, de forma alternada, de fazer chegar os molhos ao operador que, com destreza e saber, os fazia penetrar no estômago da máquina, que se encarregava de separar a palha das sementes.
As sementes iam penetrando nos crivos até se acoitarem nos sacos colocados nas bocas de saída; por sua vez, a palha dirigia-se suavemente para a frente da máquina e, sem cair, com a ajuda de ancinhos, alguém se encarregava de a colocar na verga, sempre segura, pela mão do vergueiro.
Os vergueiros, que chegavam a ser três ou quatro, eram geralmente rapazes, que pela sua idade, além de ágeis a subir a escada do palheiro, entravam ao despique de qual deles conseguia levar o borrego maior. Quantas vezes, por desequilíbrio, quando estavam ao meio da escada, era vê-los malhar com os costelaços no chão; raramente com danos físicos, porque se atiravam de modo a que o borrego da palha servisse de almofada na queda.
- Pichotes... Gritavam os mais velhos.
Os vergueiros, sempre sorridentes, mas algumas vezes, feridos no orgulho, principalmente quando se exibiam perante as moçoilas, respondiam com borregos ainda maiores, para mostrarem que a queda tinha sido um percalço na sua carreira de vergueiro afamado e valentão.
Quem não gostava nada de os ver chegar com volumosos borregos era o palheireiro, principalmente, na fase do remate final do palheiro.
Era ver o Sebastião Inocêncio lá em cima a espalhar alhos e bugalhos contra os malandros da verga que muitas vezes faziam de propósito para o por a vociferar.
- Caras de carvalho!!! Já vos disse que quero a espiga para o lado esquerdo, gritava ele.
Porém, nem sempre aqueles malandros o respeitavam.
Via-se o riso de escárnio do Zé João ou a risada desbravada do Paulo da Maria Águeda, que gritava:
Aguenta Sebastião! E, ala que se faz tarde, não fosse ele capaz de lhe torcer o pescoço e enterra-lo ali mesmo no palheiro.
Claro que cinco minutos depois já se pedia uma atinadinha ao Sebastião Inocêncio, que vaidoso, logo respondia:
-Atinadinha, atinadinha, não conheço nenhuma, mas já bebia uma pinguinha, que não tivesse espuma...
Lá subia o barrico aos píncaros do palheiro, para depois circular por todos, que o beijavam com mais fervor do que as beatas beijam o pezinho do Menino Jesus no Natal.
As mulheres, novas e menos novas, rodopiavam em torno da malhadeira varrendo as espigas .
O calor começava a apertar, a moínha pairava no ar e entranhava-se nas narinas e gargantas daquela gente que, à violência do ambiente de trabalho respondia com cânticos colectivos.
Entre uma carvalhada e uma anedota, para não falar dos segredos que se iam revelando junto dos mais próximos, ia-se calculando a "ratio" entre as poisas colhidas e o resultado traduzido em alqueires de pão
De quando em vez, alguém, imitando, dizia:
Oh rapazes!... não é por nada, mas este ano colhi mais de seiscentas poisas...
Ao que se lhe seguia uma risada colectiva, à lembrança da gabarolice sadia e simples do Joaquim Paulo que nunca perdia a oportunidade de recordar aos outros que o resultado do seu trabalho tinha sido compensador.
Já se tinha comido a côdea há algumas horas; os olhos já se viram para o fundo do lameiro do pradinho. Os estômagos pulam de contentes, por ver ao fundo duas cestas enormes na cabeça da Maria Preciosa e da Primavera.
As cozinheiras depressa estendem as toalhas à sombra das carrascas e poisam em cima os barranhões.
É dia de festa. Serve-se o melhor que se tem. Não há luxos, nem etiquetas. Cada um pega no seu garfo e vai picando...
Comem-se as papas e o arroz doce, sem deixar a aletria.
Os mais novos aproveitam para acarrar durante alguns minutos na tentativa de recuperar das noites perdidas. Os mais velhos encostam os chapéus á frente do nariz e fecham os olhos enquanto fazem o bolo
Mas, ainda alguns não tinham acabado de palitar os dentes, com vergas de giesta e, já o manager, em tom de autoridade grita:
Oh malta! Ao ataque que a mêda ainda vai alta....
O motor volta a dar os seus peidos e toda a gente se coloca nos seus postos.
O calor é arrasador. O aguadeiro circula constantemente entre o poço da horta do Manel Amaral e a laje onde a malha se desenrola. O barrico não pára, correndo de mãos em mãos. O suor cai copiosamente e limpa-se com a quota da mão. Os lenços atam-se ao pescoço ou servem de máscara para evitar que a moínha penetre as vias respiratórias.
Final da tarde. O palheiro está pronto para receber a gravata. A mêda desapareceu e o carro das vacas transporta a última carrada de centeio para as arcas na aldeia.
Os mais velhos fazem contas à produção. Os mais novos, barroqueira cereja abaixo, vão tomar banho à ribeira.
À noite há ceia colectiva. No outro dia repete-se a cena numa outra eira qualquer; até que toda a aldeia tenha nas suas arcas o produto de um ano de labuta.
Uma boa colheita era uma festa para as famílias.

domingo, 6 de abril de 2008

Primeira chamada à selecção juvenil

A casa da Maria Arminda na época era uma das mais acolhedoras do burgo. Aí se hospedava a professora primária Adelaide das Freixedas, que pelo segundo ano consecutivo, se encarregava de ensinar as primeiras letras e os primeiros números e raciocínios matemáticos às crianças da aldeia.
A data dos exames da quarta classe aproximava-se e a professora não queria correr riscos com os garotos nos exames a realizar em Pinhel.
Era domingo de tarde; elas e eles olhavam ensonados para os livros e na sala ao lado a professora conversava com a mãe, talvez falando do enxoval. Bate à porta o Manel Samuel e os garotos depressa ficam informados que os seus congéneres da Atalaia tinham vindo ao Carvalhal para disputarem um jogo de futebol. O Manel, conhecedor das capacidades futebolísticas de cada garoto da aldeia, sabia que alguns putos da quarta classe eram importantes para esse desafio, razão porque se dirigiu à casa da Maria Arminda para convencer a professora da importância em libertar alguns deles.
O diálogo não foi longo. A professora depressa se apercebeu que amarra-los aos livros enquanto decorria uma partida de futebol entre aldeias era, além de improdutivo, um bom motivo para os garotos passarem a odiar os livros.
A Adelaide era uma professora inteligente e depressa autorizou a sua saída.
Era vê-los aos pulos de contentes, voarem escadas abaixo.
Ainda não tinham descido todas as escadas e já o Paulo da Maria Águeda se virava com arrogância para o Manel Américo e lhe dizia:
- Tu não vais jogar, o que vens cá a fazer?
Ao que de imediato se houve a voz da professora e, com autoridade, responde:
- Tem o mesmo direito que tu, ou será que és tu que queres ficar aqui comigo?
O Paulo não respondeu, mas estou convicto que durante uns breves instantes o seu coração terá ficado imobilizado.
- A tão seria possível o Carvalhal jogar sem o seu Carvalho?
Claro que o Manel Américo, pouco hábil de pés, terá sorrido interiormente e pensado:
- Tens a mania, mas desta vez ias-te lixando...
Fontainhas acima, lá corriam os garotos na ânsia de chegar ao estádio.
Ali chegados, o orgulho interior era imenso.
Lá estavam os da Atalaia a dar uns toques habilidosos para fazer ver que se tinham arriscado a vir ao Carvalhal porque se sentiam superiores. Recordo o Zé Raimundo, o Berto Caldeira, o Zé Vicente, o Fernando do caixeiro e outros que já não recordo pelo nome.
O Manel Samuel escolheu os eleitos. Deu-lhe instruções tácticas, de posicionamento e, disse-lhes:
-Hoje o Carvalhal está de olhos em vós... contra a Atalaia é proibido perder.
O árbitro prepara-se para dar início ao jogo, olho para fora campo, vejo novos e velhos, rapazes e raparigas. Vejo uma aldeia orgulhosa e, penso com os meus botões.
-Hoje tem que ser um dia histórico.
Cerrei os dentes para conter a emoção, enchi o peito de ar e esperei pelo apito inicial.
Não foram precisos muitos minutos para os Carvalhenses se sentirem orgulhosos dos seus garotos. Estava marcado o primeiro da goleada que se iria seguir.
Um atrás do outro, os golos foram surgindo, fruto de trocas de bola rápida e habilidades individuais.
Os da Atalaia estavam avisados que o lingrinhas era perigoso, mas não foram capazes de o segurar.
Final do jogo. Carvalhal 9 Atalaia 0. O pequenote e franzino Zé Gil tinha marcado 5, o Leopoldo 2, e já não recordo quem marcou os restantes.
Foi levado em ombros pelos seus companheiros e todos elogiaram a sua habilidade esquerdina que tinha dizimado e esfrangalhado a defesa adversária.
Estava realizado um sonho. Foi um dia feliz da sua vida.
Os da Atalaia, humilhados pelo volume dos golos sofridos, depressa desceram à aldeia e muito rapidamente se encaminharam em direcção à casa do Joaquim Marques.
Ter-se-ão vingado nalguma árvore de fruto que encontraram pelo caminho?
Aos olhos de hoje teria sido um banal jogo entre garotos; mas para eles, meados da década de 60, a chamada à selecção dos juvenis da aldeia foi um dia histórico.
O Manel Américo de facto não jogou e o "Carvalho" fez uma exibição de respeito. A sua baliza foi inviolável.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Uma boa notícia para Pinhel

Segundo a imprensa local e regional está em curso a instalação e, espera-se que ainda este mês a empresa Woodport inicie a sua laboração nas antigas instalações da Rhode.
O investimento, segundo a imprensa, vai permitir a curto prazo o emprego a cerca de 400 a 500 trabalhadores, o que não pode deixar de se considerar um grande investimento para o concelho e para a região.
Pinhel e as suas gentes precisam desta alavanca e estou certo que representará um fôlego considerável para as actividades económicas locais, comércio, indústria e serviços que saberão colher o valor acrescentado que é gerado pela industria que se está a instalar. O Estado e a Administração local sairão também beneficiados. O desemprego tenderá a diminuir e os munícipes poderão, com mais facilidade, pagar os seus impostos municipais que servirão para a concretização e melhoria de novos equipamentos colectivos e a melhoria da qualidade de vida da cidade e freguesias do concelho.
O investimento deve assim ser encarado como um benefício de todos e não como uma fonte de receita exclusivamente benéfica para o investidor.
Uma saudação especial ao empresário António Baraças que, com o seu dinamismo, muito ajudou para que a Woodport se instalasse no nosso concelho. Ao grupo Basmad e seus administradores a maior ventura na decisão que tomaram, porque nos demonstram que a dita interioridade pode e deve transformar-se em centralidade já que a fronteira deixou de existir há muitos anos. O mercado não está só no litoral mas também na imensa Espanha e grandiosa Europa; para não falar da imensidão deste planeta global.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Raízes

Tem sido com especial agrado que tenho lido o “Notícias do Carvalhal”.
Começou ténue, mas hoje afirma-se como um instrumento fundamental de comunicação entre todos nós.
Confesso até que alguns episódios pitorescos trazidos à memória colectiva pelo meu grande amigo Joaquim Amaral me fazem transbordar de riso hilariante quando os leio no meu escritório num momento de descontracção entre a análise de um enfadonho acórdão e um telefonema de um cliente mais aflito.
Aquele momento de leitura traz-me à memória momentos de infância e juventude, deixa-me feliz ao recordar aquele universo delimitado pelo horizonte e circunscrito pelas paisagens que podemos apreciar quando nos encontramos no “Cavaleiro” ou nos transportamos até à “Cozinha do Azinhal”.
Se fecharmos os olhos por uns instantes, somos invadidos pela recordação do nosso passado vivido nas entranhas da nossa querida aldeia. Recordamos alegrias e prazer sem esquecer as lágrimas vertidas; mas estou certo que finalizamos o momento com um sorriso e com saudade.
Saudade, porque somos positivos e elevamos o bom para desvalorizarmos o mau. Com um sorriso transbordante, porque nada é mais forte na nossa memória do que as alegrias sentidas nos primórdios da nossa vivência. É inesquecível um jogo de futebol ao luar de Agosto ou a aventura de um furto comparticipado, assumido de forma espontânea, numa vinha ou cerejeira mais colorida de gotas cor de púrpura e que de noite se transformavam em sobremesa que escasseava na ementa da “ceia familiar”.
Quando criança, correndo atrás das ovelhas e das cabras, embrulhado na manta de pastor para me proteger da chuva copiosa que se abatia durante todo o dia no Inverno ou quando me dirigia à “Galafura” ou às “Trigueiras”, no Verão, atrás das vacas, e ouvia o ruído das cigarras anunciar um dia tórrido, sempre que via no horizonte um avião, pensava com os meus botões… ali vai o filho da senhora Rita, “o aviador”.
Que importante deve ser esse homem, pensava eu, fedelho que olhava para o infinito e sentia a distância que me separava desse mito; até porque, o meu horizonte era a paisagem agreste que me circundava e o seu, era o mundo que percorria aos comandos dos “jactos”, com que rasgava os céus.
Recentemente e, ao fim de muitos anos, tive o prazer de conhecer esse homem com quem tive o privilégio de poder conversar durante algumas horas no Carvalhal. Foram momentos de enriquecimento para todos os que puderam confraternizar com o Alberto Pereira numa sardinhada sempre bem orientada pelos nossos amigos Vasco Gaspar e Joaquim Ribeiro e outros que sempre mostram a sua disponibilidade na entre ajuda.
Estará o(a) leitor(a) pensativo(a) pela desconsideração em ter tratado por igual aquele senhor tão importante da memória da nossa infância. Afinal, pela sua provecta idade e pelo estatuto que granjeou ao longo da sua vida, ficar-me-ia bem falar no Senhor Comandante Alberto Pereira. É verdade, mas depressa percebi no convívio que tive com ele, que o Alberto Pereira dispensa honrarias e gosta de estar ao nível de qualquer seu conterrâneo; afinal, quase todos nós, ainda que em épocas diferentes, percorremos de pé descalço os mesmos caminhos poeirentos ou enlameados do Carvalhal.
O Alberto Pereira, conjuntamente com outros sócios, apreciou o projecto que o João Paulo apresentou para o futuro Centro de Convívio para servir as gentes do Carvalhal, dos mais idosos aos mais jovens. Foi interessante o debate em torno do projecto, mas retive na memória um apelo que não pode ficar esquecido.
Quando temos a funcionar o centro de convívio para apoiar os idosos do Carvalhal”? Perguntou, a dado momento, o “jovem” Alberto Pereira.
Pergunta acutilante, pergunta de um homem de convicção, que obrigou a troca de olhares sem resposta imediata entre os presentes, tal é a distância que separa um sonho da realidade, quando os recursos são escassos e finitos.
Essa pergunta tem que ter uma resposta; razão porque me sinto obrigado a divulgá-la junto de todos vós, ciente das minhas responsabilidades, mas também convicto da generosidade de todos os amigos do Carvalhal.
Vamos honrar o repto do Alberto Pereira que tão generoso se tem mostrado com a sua e nossa aldeia. Todos vamos dar o nosso melhor para que a obra seja uma realidade.
Vamos contribuir para um projecto que será de todos e para todos.
Vamos ajudar a Direcção a concretizar um sonho, mostrando o nosso orgulho de ser do Carvalhal, de raíz ou por adopção.
Publicado no último "Notícias do Carvalhal"