quarta-feira, 30 de abril de 2008

Dos Moinhos aos Castanheiros

Porque havia de ser assim?
Os outros juntavam-se à sombra da casa da tia Rita, jogavam à bola, à chona, faziam corridas com o arco, brincavam às escondidas, mas o mafarrico depois de almoçar, tinha que ir dormir a sesta para a casa do Alfeu.
Fechava os olhos, rebolava na cama, mas dormir era impossível.
Queria estar com eles, ter a vida deles, dormir quando eles dormiam, mas quando o pensamento deixava de voar e nos preparávamos para passar pelas brasas, lá vinham a Primavera ou o Joaquim Jerónimo, recordar-nos que tínhamos pela frente mais uma noite em branco.
- Garotos, são horas de deitar o gado fora, diziam-nos.
Final de tarde, o calor começava a dissipar-se e já o rebanho, enrolado numa nuvem de poeira, nos seguia em direcção ao Ranhadoiro.
As horas iam passando, a lua já tinha aparecido para os lados de Almeida e viajava lentamente na direcção da Atalaia. O Farrusco depois de ter acossado uma raposa desde a Gorgolicha em direcção ao Vale de Vela, tinha regressado para se manter de atalaia não muito afastado do rebanho, em posição estratégica de defesa que ele, melhor que qualquer outro, sabia ser a adequada.
O Manel ia à frente e eu encarregava-me de, na retagurada, acautelar que nenhuma ficasse para trás, por descuido ou por tresmalho
Chegados à ribeira, junto aos moinhos do Ti Zé Samuel, recebi ordens para vigiar do lado de Valverde para que as ovelhas não fossem para as Olgas do lado de lá.
Pela posição dos sete estrelos, o melhor e único relógio que possuíamos, devia ser cerca da meia noite. O cansaço invadiu o corpo e, contra as ordens do mais velho, que sistematicamente me avisava que não me podia deixar dormir, enrolei-me no chão, na esperança de que seria por escassos instantes e que ele nunca chegaria a saber.
O malvado tinha-me vencido.
Acordo sobressaltado, levanto-me num ápice, olho em todas as direcções e não enxergo, nem sinto a campainha de qualquer ovelha.
Corro em direcção ao areal que estava por cima do açude, paro e volto a confirmar. Estou só. Ovelhas, nem vê-las, grito pelo Manel e ninguém me responde. O sacana tinha-me deixado sozinho. Roguei-lhe uma praga, chamei-lhe mentalmente nomes bonitos que não ouso aqui escrever; nem queria acreditar, mas era verdade.
Sabia qual era o trajecto e tinha esperança que estivessem próximos, até porque, pensava eu, não teria fechado os olhos mais do que cinco minutos.
Ribeira acima voava sobre o areal, aqui e ali chapinhava algumas águas que ainda teimavam em não se esconder por debaixo da areia.
Tinha transposto as Olgas do Porto, mas confiava que a todo o momento os estaria a alcançar. Por vezes parava por breves instantes para tentar ouvir as campainhas e, nada; só restava continuar a correr.
Ponte das Poldras. Deixei a ribeira; voltei a gritar desesperadamente pelo Manel e, nada; nenhum som, nem um ruído; ao menos que sentisse o Farrusco ladrar.
Tinha duas hipóteses, Picarão acima em direcção ao Carvalhal ou subir as Lapaceiras em direcção à Cozinha do Azinhal.
Se escolhesse a primeira, sem dúvida mais fácil e menos medonha, corria o risco de no dia seguinte levar uma trepa do Manel, o pai e a mãe iam saber que o malandro me tinha deixado sozinho. Escolher a segunda, significava um aperto de coração muito grande. Sabia que a encosta das Lapaceiras era lugar frequentado pelos nossos maiores inimigos.
Que fazer?
Julgo que mais por medo da mão leve e do chuto fácil do Manel do que a consciência que nada me poderia acontecer ao transpor as moitas em direcção às Tapadas do Lobo; a verdade é que optei por subir as Lapaceiras.
Qualquer sombra ou algum ruído produzido por aves nocturnas gelavam-me o sangue, para logo de seguida voltar a correr desalmadamente, sempre na esperança de que estaria quase a alcançá-los; mas agora a partir da Ponte das Poldras, nem mais um grito, nem mais um apelo; não fosse ouvido por alguma alcateia que se passeasse por aquelas paragens.
Alcançada a Cozinha do Azinhal, ainda que Manel e ovelhas não visse, já respirava de alívio; tinha passado a zona de maior risco e dali até à malhada, o campo era mais aberto e menos tenebroso.
Continuei a correr caminho fora, do Barroco do Pendão em direcção à casa do Joaquim Marques, virei à esquerda pelo caminho em direcção aos Noivos até que, completamente exausto, entro na Tapada dos Castanheiros; mais cem metros à frente as últimas ovelhas davam entrada na malhada.
O Manel, como era hábito e obrigatório procedia à sua contagem.
Ainda tive uma leve esperança de poder ocultar o que se tinha passado aproximando-me da malhada atrás das últimas ovelhas, esperando que ele sempre tivesse pensado que eu tinha vindo atrás do rebanho; mas não passou disso mesmo, já que quando me aproximei, ele disse-me:
- Podias ter lá ficado a dormir toda a noite.
Fiquei-lhe com uma gana dos diabos; só não me botei a ele porque sabia que me enchalmava o corpo. Na verdade, que podia fazer um mafarrico de 9 ou 10 anos contra um "matulão" de 15 ou 16 anos, por sinal, useiro e vezeiro em impor as suas ideias junto dos irmãos mais novos com o argumento da chapada e do pontapé?
Depois do acontecido, fiquei a perceber melhor a ordem em dormir a cesta; o que nunca aceitei foi a infelicidade de não poder ter a vida dos outros da minha idade, que enquanto eu subia as Lapaceiras, cerca das quatro da manhã, borrado de medo, eles dormiam sossegadamente nas suas casas.
Será que o gosto de hoje dormir a sesta servirá para compensar as sestas que devia ter dormido na infância?
De uma coisa eu sei. Ainda que privilegiado entre os irmãos, não deixo de recordar com sentido de revolta a necessidade que havia de exploração do trabalho infantil naquela época.



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