quinta-feira, 24 de abril de 2008

Foi há 34 anos.

Remetente
Laboratório Nacional de Engenharia Civil.
A ansiedade era imensa e num ápice rasguei o envelope para devorar o seu conteúdo.
Os olhos brilharam e o coração transbordou de alegria. Tinha sido um dos escolhidos para ir trabalhar naquela, que à época, era uma das instituições mais prestigiadas de Portugal. O ordenado, quando comparado com os magros 1200$00 que recebia nos Serviços Municipalizados, era aliciante; 3.600$00 (€: 18,00)
A noite foi longa e o pensamento soprava em todas as direcções. Ia finalmente conhecer Lisboa, pensava nos seus bairros típicos, nas boémias, mas também nas responsabilidades. Será que ia conseguir? Que trabalho me estaria destinado?
O corpo contorcia-se na cama, ensonado, mas com muito desejo que chegasse o dia 29, data em que me havia de apresentar ao serviço.
Logo pela manhã desloquei-me aos Serviços Municipalizados para informar a minha chefia da sorte grande que me tinha saído.
Quando cheguei ao serviço já havia alvoroço nas águas furtadas do palacete.
Passa-se alguma coisa em Lisboa, ...parece que houve um golpe de Estado...
As perguntas corriam velozes entre nós, nem sempre as respostas chegavam claras.
Tudo era confusão, ninguém estava disposto a falar em trabalho. No sector das vistorias às instalações eléctricas a que eu pertencia, ninguém se dignou pegar nas folhas de vistoria e sair para a rua para chumbar mais umas quantas instalações eléctricas de cordão. O anafado chefe César, natural do Ferro, trocava impressões com o chefe da calibração dos contadores, senhor Calado.
A coisa parecia ser séria e já o Engenheiro Gabriel se convencia que a rapaziada, além de não estar preocupada com o serviço, também pouco se importava com a sua sempre temida presença.
As informações davam sinais de que os alfacinhas já se passeavam euforicamente pelas ruas e por isso também nós na Covilhã tínhamos o direito de não fazer nada nesse dia.
Confuso, preocupado, mas lá consegui dizer ao chefe que a partir daquele dia já não voltava a trabalhar nos Serviços.
O Senhor César, de face muito rosada, ouviu e no final disse-me:
- Oh homem você vai para Lisboa e não tem medo do que se está a passar por lá?
Que medo poderia ter um jovem de 19 anos que estava farto de aturar o carrasco do Eng. Gabriel?
Incertezas tinha muitas, mas a ânsia de ir trabalhar para Lisboa e para o conceituado Laboratório Nacional de Engenharia Civil superava tudo e, jamais vacilei na vontade de partir.
Era necessário deslocar-me a Pinhel para conseguir um certificado do Curso Industrial que me deveria acompanhar até ao novo emprego.
Dia 26 e 27 foram passados em Pinhel e no dia 28 tomo o comboio da Beira Baixa rumo a Santa Apolónia.
Foram longas horas de viagem. Deu para meditar muito; as asneiras que tinha feito nos últimos dois anos em que os estudos foram subalternizados relativamente à vida boémia. Os colegas que tinha tido. As diferenças sociais notórias entre colegas oriundos de quadrantes bem distanciados, desde o simples aldeão, como eu, até ao filho do industrial que se passeava de carro desportivo, passando pelos filhos dos pequenos comerciantes; de tudo conheci naquela cidade.
Quanto tinha sido diferente na pequena cidade de Pinhel onde os laços de amizade eram mais fortes porque nos sentíamos todos como irmãos, ao passo que na Covilhã uns eram filhos - os ditos ricos, os outros os enteados - os pobres, que muitas vezes não tinham uns tostões para jogar uma partida de bilhar no "Sporting da Covilhã" ou tomar uma bica no Montalto.
A lentidão do comboio sempre permitia que fosse projectando uma nova vida. Sonhava que ia ter dinheiro para todo o mês; o que não acontecia com o magro salário recebido até ali.
E se quando lá chegasse andassem todos aos tiros? Que poderia eu fazer? Se não pudesse trabalhar, como poderia sobreviver?
Finalmente os altifalantes anunciam Santa Apolónia.
Desço do comboio e, feito autómato, sigo os outros que em correria se dirigiam para o exterior.
Dei o primeiro passo no degrau de saída da estação. Paro atónito, vejo muitos autocarros, do lado esquerdo uma imensa avenida pejada de carros que correndo, parecia que iam embater uns nos outros, sem perceber o que significava circular em dois sentidos, em mais de uma fila para cada lado.
O coração tremeu, a angústia toma conta de mim e choro interiormente.
Quero ir para Campo de Ourique, Rua Infantaria 16, à procura do Antero Ramos, antigo companheiro de Escola em Pinhel.
Lentamente o 9 dirige-se para a Praça do Comércio, sobe a Av. da Liberdade, contorna o Rato, dirige-se à Estrela e quando chega à Saraiva de Carvalho, o revisor informa-me que cheguei ao destino. Sentia-me pequenino, destroçado, naquela grande cidade.
Mala às costas dirijo-me à Infantaria 16, toco à campainha do segundo andar de um número que já não recordo.
Espreita uma velhinha e, meio engasgado, pergunto se vive ali o Antero de Almeida Ramos.
- Não. Já morou, mas foi-se embora à cerca de 2 meses, respondeu a velhinha.
Mais uma vez fico desolado.
Como poderei agora desenrascar-me se confiava encontrar o Ramos e afinal já não está?
Passaram uns segundos e reagi, em boa hora, porque a velhinha tinha um quartinho muito pequenino onde podia ficar.
À noite conheci o Cardoso, outro hospede que trabalhava na restauração e o neto da velhinha, que mais tarde percebi ser um Troteskista a atirar para o anarca, que não querendo fazer nada, lá vivia a custa da vóvó, os quais me explicaram que transportes devia apanhar para chegar ao Laboratório no dia seguinte.
Senti-me mais animado, sempre podia conviver com mais dois jovens que, embora diferentes, me podiam ser muito úteis.
Dia 29 de Abril, depois de admirar a noite que se vive no metro, desemboco na Praça de Alvalade e, passado um quarto de hora franqueio os portões do Laboratório Nacional de Engenharia Civil.
Dirijo-me ao Departamento de Pessoal onde sou recebido por uma senhora simpatiquíssima, a Fernanda, esposa do Técnico Experimentador Neves, que ao fim de algumas explicações, me diz:
-Apresenta-se num dia muito especial. Hoje é a primeira RGA (Reunião Geral de Trabalhadores).
14.30 h um mar de gente saindo dos mais diversos edifícios que compõem o complexo do LNEC e, como formigas, dirigem-se ao edifício central (CDI).
Entro numa sala enorme com umas cadeiras do mais confortável que se conhecia na época. Os corredores e galerias do anfiteatro nº 1 estavam apinhados de gente.
Começaram as intervenções e depressa me apercebi que tinha começado a caça aos pides e bufos que ainda estavam no LNEC.
Os manos Gonçalves Henriques, Jorge Moiano, António Nunes Correia, hoje Ministro, tirocinantes de Engenharia do Instituto Superior Técnico na altura, Dr Carlos Morais, Eng. Bau e Mário Lino, também ele actualmente Ministro, foram os animadores dum festim em que se gritava "Morte à PIDE e a quem a apoiar..."
Estavam decorridos os primeiros dias de um período histórico de relevante importância para o futuro da sociedade portuguesa.
Cerca de um ou dois meses depois vi na televisão, como destacado dirigente local do Partido Socialista na Covilhã, o Eng. Gabriel; o tal carrasco de que me tinha livrado e pensei:
- Com indivíduos como este jamais serei do Partido Socialista.
O certo é que só por volta dos finais dos anos 80 comecei a gostar do PS; se calhar tinha interiorizado que esse fascista do Gabriel, lá nos confins da Covilhã, já tinha sido desmascarado.

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