quinta-feira, 10 de abril de 2008

Rumo ao Seminário

Era madrugada. Uma ligeira aragem varria a estação. O povinho já se espalhava pela cais, quando se houve um rugido vindo do lado esquerdo, para logo de seguida romper triunfal uma enorme máquina negra que vomitava um fumo intenso, mais negro que a lã da saudosa andorinha, uma das mais belas do rebanho. A máquina passa e atrás de si seguem-se-lhe diversas carruagens.
Malas e sacas de batatas acomodadas, vou à janela e, num misto de alegria e tristeza, sinto-lhe o deslizar vagaroso e com dois estridentes assobios despede-se da gare. Mais umas fumarolas e já ele se embala rumo a Celorico da Beira.
Tudo era novidade.
Uma carruagem ampla com bancos corridos de madeira, ao fundo umas casotas interiores que na porta exibiam as letras WC.
Aqui é a casa de banho, disse ela, com ar de guia e mestre em viagens.
Não disse nada, mas recordei a imensidão da paisagem que se escondia atrás de um qualquer barroco na aldeia e o cubículo que me estava reservado quando a necessidade apertasse.
Ao menos descobri-lhe uma vantagem. Já não tinha que procurar umas ervas...
Ora sentado, ora de pé, com o gargalete fora da carruagem lá me ia deslumbrado com a paisagem.
Tudo era novidade.
As pontes, os túneis que surgiam do nada para logo voltar a ser dia, as vilas e aldeias nunca antes vistas.
Chanca, chanc, chanca, chanc, chanca, chanc, mais um silvo e outra estação que ficava para trás, até que, passadas algumas horas, ele queda junto a um pontão cumprido.
Era um emaranhado de linhas, locomotivas que se moviam de um lado para o outro, mais adiante passa um comboio veloz que não pára. O nome estava bem gravado na estação. Pampilhosa.
Enorme, tudo era tão diferente do meu mundo.
Gente que corria, gente que carregava malas enormes e se arrastava pelos cais e já o altifalante berrava:
-Atenção senhores passageiros, comboio para o Porto, linha 6, parte às 12.30 h.
E repetia:
-Atenção senhores passageiros, comboio para o Porto, linha 6, parte às 12.30 h
Ela, sempre sorridente, dizia-me:
-Vamos, vamos, está quase a partir...
Exaustos pela mudança, mas agora melhor sentados.
Era linda a carruagem, bem compartimentada, de bancos verdes macios, que depressa fizeram esquecer o comboio da Beira Alta.
Agora podia apreciar o que já tinha aprendido nos bancos da escola primária.
Ali estava a linha do norte, electrificada.
Partiu veloz e passado pouco tempo estava a apreciar os campos de milho infindáveis.
Tudo era verde.
Não se viam carrascas e os barrocos só os encontrava quando interiorizava e virava o pensamento para tudo o que ficava para trás - os pais, irmãos, amigos, o farrusco, a princesa, a andorinha, a doninha e tantas outras imagens que me faziam crescer um sentimento de angústia, que por vezes se escondia para dar lugar ao antídoto.
Afinal todos, pais e irmãos, uniram vontades e permitiram que o garoto franzino se libertasse daquele desterro e fosse aprender, mais e mais, para um dia mais tarde não ter que continuar a dormir com as ovelhas ao relento ou na corte das vacas, numa tarimba abafada.
Eles mereciam e merecem toda a minha gratidão.
Do lado esquerdo surgia o imenso mar que só em pensamentos o conhecia.
Tudo era lindo, tudo encantava.
A estação das Devesas já ficava para traz e eis que surge, imponente, a ponte D. Maria
Quase que parecia dormir, tal era a lentidão com que estava a atravessar a ponte em direcção ao Porto. Olhava para o Douro, a ponte D. Luis, a ponte da Arrábida, o Palácio Cristal e, pensava:
- Sou tão pequenino.
O meu Carvalhal é tão pequenino.
A Ribeira das Cabras, mesmo em tempo de cheia, é tão pequenina.
E eu que achava a cidade de Pinhel tão grande...
Depois de ter parado uns minutos em Campanhã, entra no escuro do túnel para, passado pouco tempo, se quedar finalmente na estação de S. Bento.
- Chegámos, disse ela.
E ainda mal tínhamos descido as escadas e já se aproximava de nós o António Gil que sempre sorridente e galhofeiro nos deu um grande abraço.
Transpusemos as portas da estação e vi um mundo de outro mundo. Os carros, os eléctricos, os autocarros, peões correndo pelas ruas.
Onde me vim meter, pensava eu com os meus botões e, já o António Gil me puxava pela mão para subir para o autocarro.
Depressa chegámos à rua da Boavista, calcorreamos o passeio da R. Barão de Forrester, franqueámos um enorme portão e em frente surgiu um grande largo com muitas garagens, tendo no seu lado esquerdo uma casinha, pequena, mas acolhedora. Ali estava a Maria Adelaide e o seu bébé Joaquim Gil, hoje mais conhecido pelo tripeiro e fanático do F.C.P.
Ela, que me acompanhou na viagem, jovem bonita, que já a algum tempo vivia no Porto aprendendo as artes de cabeleireira, era a Maria Amélia do António João, que tendo estado alguns dias no Carvalhal, foi a minha âncora e a minha protectora no caminho para o mundo da civilização.
O destino era o seminário que me esperava dali a dois ou três dias e onde passei três anos.

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