domingo, 6 de abril de 2008

Primeira chamada à selecção juvenil

A casa da Maria Arminda na época era uma das mais acolhedoras do burgo. Aí se hospedava a professora primária Adelaide das Freixedas, que pelo segundo ano consecutivo, se encarregava de ensinar as primeiras letras e os primeiros números e raciocínios matemáticos às crianças da aldeia.
A data dos exames da quarta classe aproximava-se e a professora não queria correr riscos com os garotos nos exames a realizar em Pinhel.
Era domingo de tarde; elas e eles olhavam ensonados para os livros e na sala ao lado a professora conversava com a mãe, talvez falando do enxoval. Bate à porta o Manel Samuel e os garotos depressa ficam informados que os seus congéneres da Atalaia tinham vindo ao Carvalhal para disputarem um jogo de futebol. O Manel, conhecedor das capacidades futebolísticas de cada garoto da aldeia, sabia que alguns putos da quarta classe eram importantes para esse desafio, razão porque se dirigiu à casa da Maria Arminda para convencer a professora da importância em libertar alguns deles.
O diálogo não foi longo. A professora depressa se apercebeu que amarra-los aos livros enquanto decorria uma partida de futebol entre aldeias era, além de improdutivo, um bom motivo para os garotos passarem a odiar os livros.
A Adelaide era uma professora inteligente e depressa autorizou a sua saída.
Era vê-los aos pulos de contentes, voarem escadas abaixo.
Ainda não tinham descido todas as escadas e já o Paulo da Maria Águeda se virava com arrogância para o Manel Américo e lhe dizia:
- Tu não vais jogar, o que vens cá a fazer?
Ao que de imediato se houve a voz da professora e, com autoridade, responde:
- Tem o mesmo direito que tu, ou será que és tu que queres ficar aqui comigo?
O Paulo não respondeu, mas estou convicto que durante uns breves instantes o seu coração terá ficado imobilizado.
- A tão seria possível o Carvalhal jogar sem o seu Carvalho?
Claro que o Manel Américo, pouco hábil de pés, terá sorrido interiormente e pensado:
- Tens a mania, mas desta vez ias-te lixando...
Fontainhas acima, lá corriam os garotos na ânsia de chegar ao estádio.
Ali chegados, o orgulho interior era imenso.
Lá estavam os da Atalaia a dar uns toques habilidosos para fazer ver que se tinham arriscado a vir ao Carvalhal porque se sentiam superiores. Recordo o Zé Raimundo, o Berto Caldeira, o Zé Vicente, o Fernando do caixeiro e outros que já não recordo pelo nome.
O Manel Samuel escolheu os eleitos. Deu-lhe instruções tácticas, de posicionamento e, disse-lhes:
-Hoje o Carvalhal está de olhos em vós... contra a Atalaia é proibido perder.
O árbitro prepara-se para dar início ao jogo, olho para fora campo, vejo novos e velhos, rapazes e raparigas. Vejo uma aldeia orgulhosa e, penso com os meus botões.
-Hoje tem que ser um dia histórico.
Cerrei os dentes para conter a emoção, enchi o peito de ar e esperei pelo apito inicial.
Não foram precisos muitos minutos para os Carvalhenses se sentirem orgulhosos dos seus garotos. Estava marcado o primeiro da goleada que se iria seguir.
Um atrás do outro, os golos foram surgindo, fruto de trocas de bola rápida e habilidades individuais.
Os da Atalaia estavam avisados que o lingrinhas era perigoso, mas não foram capazes de o segurar.
Final do jogo. Carvalhal 9 Atalaia 0. O pequenote e franzino Zé Gil tinha marcado 5, o Leopoldo 2, e já não recordo quem marcou os restantes.
Foi levado em ombros pelos seus companheiros e todos elogiaram a sua habilidade esquerdina que tinha dizimado e esfrangalhado a defesa adversária.
Estava realizado um sonho. Foi um dia feliz da sua vida.
Os da Atalaia, humilhados pelo volume dos golos sofridos, depressa desceram à aldeia e muito rapidamente se encaminharam em direcção à casa do Joaquim Marques.
Ter-se-ão vingado nalguma árvore de fruto que encontraram pelo caminho?
Aos olhos de hoje teria sido um banal jogo entre garotos; mas para eles, meados da década de 60, a chamada à selecção dos juvenis da aldeia foi um dia histórico.
O Manel Américo de facto não jogou e o "Carvalho" fez uma exibição de respeito. A sua baliza foi inviolável.

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