terça-feira, 8 de abril de 2008

A malha

O ritual repetia-se todos os anos. A malhadeira assentava arraiais em todas as eiras do povoado. Nada ficava por malhar. Os mangualdes faziam parte do passado e tinham dado lugar a essa máquina alta, imponente, que quando bem alimentada, era um regalo vê-la parir sacos de centeio com a mêda a desfazer-se.
O sol ainda não espreitava para os lados de Almeida e já a eira do pradinho se enchia de actores prontos a entrar em cena num espectáculo de plateia vazia.
Todos conheciam o papel a desempenhar.
O motor, que ao inicio mais parecia uma velha com dores de barriga a libertar gases incontidos, cuspia do escape negras fumarolas, para depois se estabilizar num ritmo sincronizado que, através da correia ligada à poli, fazia vibrar toda a malhadeira pronta a receber os molhos de centeio, que devorava ao ritmo imposto pela cadeia humana capaz de a alimentar.
O Zé Paulo, que mais tarde se encarregou por muitos anos da defesa do Presidente Mário Soares, gritava do alto:
- Venha pão, venha pão...
Os garotos, ágeis, mas de pouco músculo, empoleirados em cima da mêda, encarregavam-se de atirar molhos para o chão junto à malhadeira. Ali, num ritmo acelerado, pelo menos mais dois actores se encarregavam, de forma alternada, de fazer chegar os molhos ao operador que, com destreza e saber, os fazia penetrar no estômago da máquina, que se encarregava de separar a palha das sementes.
As sementes iam penetrando nos crivos até se acoitarem nos sacos colocados nas bocas de saída; por sua vez, a palha dirigia-se suavemente para a frente da máquina e, sem cair, com a ajuda de ancinhos, alguém se encarregava de a colocar na verga, sempre segura, pela mão do vergueiro.
Os vergueiros, que chegavam a ser três ou quatro, eram geralmente rapazes, que pela sua idade, além de ágeis a subir a escada do palheiro, entravam ao despique de qual deles conseguia levar o borrego maior. Quantas vezes, por desequilíbrio, quando estavam ao meio da escada, era vê-los malhar com os costelaços no chão; raramente com danos físicos, porque se atiravam de modo a que o borrego da palha servisse de almofada na queda.
- Pichotes... Gritavam os mais velhos.
Os vergueiros, sempre sorridentes, mas algumas vezes, feridos no orgulho, principalmente quando se exibiam perante as moçoilas, respondiam com borregos ainda maiores, para mostrarem que a queda tinha sido um percalço na sua carreira de vergueiro afamado e valentão.
Quem não gostava nada de os ver chegar com volumosos borregos era o palheireiro, principalmente, na fase do remate final do palheiro.
Era ver o Sebastião Inocêncio lá em cima a espalhar alhos e bugalhos contra os malandros da verga que muitas vezes faziam de propósito para o por a vociferar.
- Caras de carvalho!!! Já vos disse que quero a espiga para o lado esquerdo, gritava ele.
Porém, nem sempre aqueles malandros o respeitavam.
Via-se o riso de escárnio do Zé João ou a risada desbravada do Paulo da Maria Águeda, que gritava:
Aguenta Sebastião! E, ala que se faz tarde, não fosse ele capaz de lhe torcer o pescoço e enterra-lo ali mesmo no palheiro.
Claro que cinco minutos depois já se pedia uma atinadinha ao Sebastião Inocêncio, que vaidoso, logo respondia:
-Atinadinha, atinadinha, não conheço nenhuma, mas já bebia uma pinguinha, que não tivesse espuma...
Lá subia o barrico aos píncaros do palheiro, para depois circular por todos, que o beijavam com mais fervor do que as beatas beijam o pezinho do Menino Jesus no Natal.
As mulheres, novas e menos novas, rodopiavam em torno da malhadeira varrendo as espigas .
O calor começava a apertar, a moínha pairava no ar e entranhava-se nas narinas e gargantas daquela gente que, à violência do ambiente de trabalho respondia com cânticos colectivos.
Entre uma carvalhada e uma anedota, para não falar dos segredos que se iam revelando junto dos mais próximos, ia-se calculando a "ratio" entre as poisas colhidas e o resultado traduzido em alqueires de pão
De quando em vez, alguém, imitando, dizia:
Oh rapazes!... não é por nada, mas este ano colhi mais de seiscentas poisas...
Ao que se lhe seguia uma risada colectiva, à lembrança da gabarolice sadia e simples do Joaquim Paulo que nunca perdia a oportunidade de recordar aos outros que o resultado do seu trabalho tinha sido compensador.
Já se tinha comido a côdea há algumas horas; os olhos já se viram para o fundo do lameiro do pradinho. Os estômagos pulam de contentes, por ver ao fundo duas cestas enormes na cabeça da Maria Preciosa e da Primavera.
As cozinheiras depressa estendem as toalhas à sombra das carrascas e poisam em cima os barranhões.
É dia de festa. Serve-se o melhor que se tem. Não há luxos, nem etiquetas. Cada um pega no seu garfo e vai picando...
Comem-se as papas e o arroz doce, sem deixar a aletria.
Os mais novos aproveitam para acarrar durante alguns minutos na tentativa de recuperar das noites perdidas. Os mais velhos encostam os chapéus á frente do nariz e fecham os olhos enquanto fazem o bolo
Mas, ainda alguns não tinham acabado de palitar os dentes, com vergas de giesta e, já o manager, em tom de autoridade grita:
Oh malta! Ao ataque que a mêda ainda vai alta....
O motor volta a dar os seus peidos e toda a gente se coloca nos seus postos.
O calor é arrasador. O aguadeiro circula constantemente entre o poço da horta do Manel Amaral e a laje onde a malha se desenrola. O barrico não pára, correndo de mãos em mãos. O suor cai copiosamente e limpa-se com a quota da mão. Os lenços atam-se ao pescoço ou servem de máscara para evitar que a moínha penetre as vias respiratórias.
Final da tarde. O palheiro está pronto para receber a gravata. A mêda desapareceu e o carro das vacas transporta a última carrada de centeio para as arcas na aldeia.
Os mais velhos fazem contas à produção. Os mais novos, barroqueira cereja abaixo, vão tomar banho à ribeira.
À noite há ceia colectiva. No outro dia repete-se a cena numa outra eira qualquer; até que toda a aldeia tenha nas suas arcas o produto de um ano de labuta.
Uma boa colheita era uma festa para as famílias.

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