sábado, 26 de abril de 2008

Os mantanas

Os garotos da terra andavam eufóricos.
As irmãs do Zé João, cabeleireiras no Porto, tinham-lhe dado uma bola de "catchu".
Que pinta de bola... era daquelas que já tinham câmara de ar.
Era tempo de luar e como durante o dia todos andavam ocupados na faina agrícola, só lhes restava aproveitarem o luar e fazer umas jogatanas depois da ceia, entre as 10 h e a meia noite.
Tudo combinado. Com o máximo de descrição, a concentração deveria fazer-se junto ao chafariz do cimo do povo e dali, em bando, partiríamos para a escola, onde nos esperava uma grande partida futebolística na estreia da bola de catchu.
Os garotos sabiam que o risco era grande, mas nenhum queria perder a hipótese de participar naquele jogo com bola mesmo a sério, daquelas que sabíamos que existiam , mas que só em sonhos as visualizávamos.
Mal acabei de cear, raspa-te, antes que se faça tarde.
Já na rua, outros se juntaram e toca de nos dirigirmos ao chafariz do cimo do lugar.
Tínhamos já transposto o Largo do Cimo do Lugar, rua a cima, quando nos cruzámos com o António Paulo que deveria vir das cortes das Paijoanas, onde, se bem me recordo, na época o Manuel Amaral guardava as vacas.
- Boa noite Tónio.
Boa noite rapaziada, respondeu amavelmente, o Tónio Paulo.
Oh Tónio, nós vamos jogar à bola para a escola, não digas nada aos outros, está bem?
Estejam descansados, eu não digo nada...
O Tónio era diferente da maioria dos outros rapazes. Nunca participava nos ataques que eles nos faziam quando jogávamos às escondidas junto ao forno ou no adro da igreja, razão bastante e suficiente para ficarmos descansados. Era um tipo bestial, pensávamos nós.
Concentração feita, rapidamente chegámos à escola. A constituição das equipas obedecia geralmente a dois ou três critérios; a saber, os de baixo contra os de cima, o Benfica contra o Sporting ou então encarregavam-se dois de fazer a escolha alternada dos elementos que gostavam de ver na sua equipa.
Já não recordo qual tenha sido o critério, mas a bola já rolava há algum tempo, com vários golos de parte a parte, quando o Manuel Américo, talvez mais atento ao que se passava fora do campo do que a uma boa jogada da sua equipa, grita:
- É pá, É pá, vi a parede do Pedro a mexer...
- És parvo, deves andar com o medo da tua sombra, foi a resposta do "Carvalho" que preocupado na segurança das suas redes se recusava aceitar que alguém nos viesse estragar a festa.
-Olha, estão ali, eu vi, eu vi, gritava assustado o Manel Américo. Vi passar um atrás daquela parede...
Ainda mal tinha acabado e já se ouviam estridentes assobios, vindos dos mais diversos lados; da vinha do Joaquim Oliveira, do nabal, da figueira do Pedro, do caminho que dava acesso à escola.
Eram os malditos mantanas que nos cercavam e se preparavam para o ataque.
Afinal o "Méquinho" tinha razão; as paredes não se moviam, mas escondiam atrás de si os tenebrosos mantanas que vinham para nos arrear.
Com assobios estridentes, ecoando no silêncio da noite, os gajos davam sinais entre si, de que tinha chegado o momento do ataque.
À pernas para que vos quero, há que dar às vila Diogo, e cada um pensou logo em por-se a salvo.
O cerco era total; se nos dirigíamos ao portão da escola aí estavam vários mantanas encostados ao muro, o nabal do Joaquim Oliveira era evidente que estava minado, quem correu em direcção da figueira do Pedro, depressa se arrependeu, porque as vergastadas provinham de todos os lados...
Salve-se quem puder.
Todos sabíamos as regras e enquanto não conseguíssemos entrar numa casa, a todo o momento estávamos sujeitos às varadas daqueles patrões da noite.
Cada um cuidou de si e, não raro, ouviam-se gritos de dor, vindas do meio das vinhas.
A casa do Zé João era o posto de acolhimento mais próximo, onde depois de algumas quedas no meio do vinhedo, todos ansiavam chegar.
Já alguns de nós estavam a salvo na varanda, vendo alguns mantanas que circulavam na vinha do Zé Júlio, hoje do Francisco Gil, quando de repente o Méquinho, que se preparava para saltar a parede da vinha para o quintal do Zé João, gritou:
-Já estou salvo, já estou salvo.
Palavras não eram ditas e dois vultos se levantam na sua direcção, houve-se o zumbido das "vergas" e um grito alucinante de dor.
- Ai ai, que me matam...
Mais duas ou três varadas e lá conseguiu o Manel Américo por-se a salvo no quintal.
- Filhos da puta, cabrões, ide bater pró ... carvalho, eram algumas das expressões, por nós utilizadas, já no recato da varanda do Tónio João.
Eles, escondidos por baixo das mantas, e alguns pavoneavam-se, em frente ,na rua em sinal de superioridade, como se fossem os donos da aldeia.
O tempo passava, a noite já ia longa e não havia meio daqueles gajos irem embora, até que no meio dos garotos se houve a voz de um, que pela idade e porte físico, já se considerava tão importante como alguns dos mantanas. Só estava entre os garotos porque ainda não tinha pago o vinho.
Em tom de ameaça e de peito feito, gritou para o exterior:
- Eu vou para minha casa e se algum filho da puta me tocar parto-lhe os cornos.
Confiante no seu cabedal, desce as escadas e toca de caminhar na rua. Ao aproximar-se da casa do ti Júlio, um mantana barra-lhe o caminho disposto a zurrar-lhe o corpo, mas o Tónio do Joaquim Jerónimo, por sinal meu irmão, não se intimida e, vai daí saca a vara ao mantana e toca de o malhar, até que, os outros ao verem um dos seus soldados a ser arreado vêm em seu socorro.
Grande refrega se dá na rua, com o Tónio a enfrentá-los heroicamente, dando e levando, até que um dos mantanas, ainda mais agressivo, arreia fortemente no Tónio.
Tratava-se, segundo rezavam as crónicas da época, do Manel Jerónimo que, para manter a tradição, não se coibiu de arrear no irmão em defesa, do ainda caloiro, mantana Zé Paulo do Manel Prazeres.
Os garotos sempre ficaram na dúvida se afinal o bondoso António Paulo não terá ido à Casa do Povo e aí os tenha traído junto dos seus pares, que felizes pela notícia, logo trataram de ir buscar as mantas para, alegremente, virem malhar nos nossos corpos franzinos.


Para o leitor menos familiarizado, aqui vai alguma informação.
Mantana - nome dado a cada um dos rapazes da aldeia que, em grupo e, cobertos por mantas circulavam à noite pelas ruas com o objectivo de bater nos garotos que se aventurassem sair de casa depois de cear (jantar).

A distinção entre garotos e rapazes fazia-se pele chamada "pagadela do vinho", ritual a que se candidatavam os jovens entre os 16 e os 18 anos e, a partir da qual eram considerados rapazes de pleno direito.

Os garotos da aldeia estavam proibidos de sair de casa depois da ceia.
No tempo da reza do terço podiam ir à igreja e logo que acabasse a novela deviam acompanhar as mães até à casa, sob pena de levarem umas verdascadas desses mantanas.

Era o jogo do gato e do rato; quantas vezes fomos atacados, mas a vontade de brincar na rua à noite nunca nos inibiu de correr o risco de sermos apanhados. Na altura, qualquer garoto da aldeia era como uma gazela que, de pés calejados, corria mais do que hoje correm os atletas de alta competição, com a devida vénia, claro está; e a noite, sem iluminação pública, era um ambiente que nos escondia e protegia.


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