domingo, 14 de dezembro de 2008

O dia 24

Tal como os dias anteriores, o dia 24 de Dezembro acordou cinzento escuro.
O gelo acumulado de vários dias teimava em quebrar os galhos das árvores e o frio tinha vindo para ficar. O sol tinha-nos deixado há mais de oito dias e o nevoeiro intenso banhava todo o povoado invadido pelo sincêlo que gretava a terra e esbranquiçava a paisagem.
Ainda não eram sete da manhã e já as lareiras, crepitando, teimavam em tornar as casas menos inóspitas porque densamente carregadas de humidade e frio que até os cães e gatos fazia tinir.
O ar nas ruas era asfixiante; o fumo das lareiras não se erguia no céu devido à humidade intensa que pairava no ar .
Como em todos os dias, a caldeira pendurada nas lares era banhada pelas chamas de umas vides que preparavam a morte de uns belos cavacos de carrasco e já se ouvia o grunhir dos marranos um pouco por todo o lado e o mugido das vacas mais despertas. Se a maior parte das matanças já estavam feitas, algumas ainda estavam por fazer.
Panelas grandes ao lume porque o dia ia ser de festa.
Para alguns o dia era reservado aos preparativos da grande ceia natalícia.
Para outros, a rotina não podia ser quebrada. O gado berrava nas cortes chamando o pastor. Este, manta às costas e bornal a tiracolo, na companhia dos fiéis cães de guarda, sabia que ia ser mais um dia calcorreando pastagens mas, face à efeméride, também tinha guardado boas surpresas para o rebanho.
Aquele dia não era só festivo para as pessoas; o gado também tinha o direito de ver as suas refeições substancialmente melhoradas.
Bateu o meio dia e, em loucas correrias pelo adro da igreja, muitos putos dirigiram-se ao sino para não mais o largarem, revezando-se aos badalos, não fossem as mãos congelar.
Alguns, dizia, nem todos, porque outros ouviam os sinos fazendo eco nos cabeços vizinhos dos murtórios, das vinhas do cabeço ou da cotovia e uma dor profunda cortava-lhes o coração. Não podiam participar na festa colectiva do peditório e da acarranja da lenha que a pequenada fazia para, noite dentro, se aquecer o Menino Jesus.
Sim, os que tinham o privilégio dos pais não terem rebanhos, sujos e enlameados carregavam a lenha fazendo montes em diversos locais do povoado para, mais à noite, os rapazes carregarem nos carros de bois, puxados a pulso pelos jovens, em guinadas e ziguezagues, provocados pelas lamas, pedregulhos ou forças mal equilibradas no cambão.
Eles, os que faziam o pastoreio, continuavam no campo olhando o céu, ouvindo o latir dos cães enraivecidos pelo barulho dos sinos. Batiam os pés no chão para não congelarem, atiravam pedradas ou gritavam às ovelhas e cabras que teimava fazer seu o que era alheio. Encharcavam os pés nas regadas onde as águas corriam e se espalhavam provenientes das rigueiras transbordantes.
Naquele dia as horas eram eternas e a ânsia da chegada da noite era arrasadora para os que no campo nunca mais viam os sinais do entardecer.
- Quantos carros de lenha teriam eles já carregado?
- Este ano seria a maior fogueira já mais feita na aldeia?
Perguntas em silêncio que só mais tarde iriam obter resposta...

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