terça-feira, 22 de julho de 2008

Pró Pereiro, carvalho!!!

Estava um dia de sol.
As mães pastavam serenamente a erva tenra do Lameiro da Ribeira enquanto os filhotes, mais de duas dezenas, enfileiravam-se na parte mais alta do lameiro, prontos para mais uma corrida brincalhona. A partida dava-se a nascente, junto à parede que confinava com o picarrão, desenvolvia-se em frente do portal e acabava, quase sempre, já próximo das quedas de água que transbordavam do caminho, a poente, para dentro do lameiro.
O juvenil pastor aproveitava para gozar o prazer de ver brincar os cordeirinhos e ler um clássico que tinha levantado na biblioteca itinerante da Gulbenkian que uma vez por mês se quedava na aldeia e onde os mais novos corriam ávidos as prateleiras para conseguirem os melhores romances que se liam na época. Lev Tolestoi, Dostoievski, Júlio Verne, Victor Hugo, Aquilino Ribeiro, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco e outros.
O tempo passava suavemente.
Meio da manhã, na tapada por cima do caminho, mesmo em frente ao picarrão, e onde ainda se colocou o pendão, o ti Henriques assenta o arado que de seguida amarra ao jugo de uma parelha desequilibrada. De um lado uma vaca pachorrenta, mas firme na força aplicada para fazer deslizar o arado que iria aricar a seara de centeio, do outro, uma burra, que ainda que fosse esforçada, sempre se desequilibraria ante um ímpeto de força imposto pela vaca, sempre que sentia o aguilhão ou a voz estridente do lavrador.
Com o misto de uma parelha e de uma junta, o ti Henriques corria o risco de, em vez de aricar o centeio, arrancá-lo com o arado e por isso trazia sempre consigo a Dulce, sua filha, que à frente dos animais se encarregava de controlar as suas forças e movimentos, procurando levar torna direita.
O Ti Henriques, de rabiça na mão, lá ia dando orientações à Dulce que tudo fazia para as cumprir escrupulosamente, não fosse o pai vociferar umas estridentes carvalhadas que fariam eco nas encostas da Abilheira e se ouviriam por todos os que andassem nas redondezas, desde o Barroco Quebrado até às Lapaceiras.
A Dulce bem se esforçava, mas o ti Henriques tirava o azimute a cada dois segundos. Como a orientação pelos pontos cardeais não fazia parte do vocabulário do lavrador, este, a cada instante, gritava:
- Pró Pereiro, pra Valverde, prá Atalaia... a Dulce, numa fôna andarilheira, procurava mudar de direcção, puxando rédea ou com a vara molestando a vaca no focinho, conforme o pai pretendia um direcionamento mais à esquerda ou mais à direita.
Os regos a aricar não teriam mais de 30 ou 40 metros de cumprimento, mas o ti Henriques, nem por um instante se calava e sempre com a mesma ladainha:
- Pró Pereiro, pró Pereiro... prá Atalaia, carvalho, pra Valverde, prá Atalaia, Pró Azinhal, carvalho.
Era impossível. A Dulce bailava em frente da vaca e da burra, mas o ti Henriques, não satisfeito lá continuava:
Pra Peva, Pró Pereiro, carvalho, prá Atalaia, carvalho; pró Pereiro, pra Valverde, carvalho.
Os carvalhos saiam voláteis da boca do ti Henriques, vibravam nos tímpanos da Dulce e perdiam-se pelo vale da Ribeira das Cabras.
A Dulce ouvia em silêncio, a Dulce sofria, a Dulce aguentava. O pai, sobrevivente da batalha de "La Lys" na Flandres, França, era uma figura muito conhecida pelos seus alhos e bugalhos que espalhava aos quatro ventos.
Naquele dia o pequeno pastor ouviu mais alhos do que bugalhos teria já colhido nas moitas dos carvalhos, nos poucos anos que ainda tinha de vida.
Ficou a memória do dia que as ovelhas pastaram, os borregos brincaram e o ti Henriques semeou todos os alhos que a Dulce preferiu não arrancar...

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