quarta-feira, 30 de julho de 2008

O Zeca Diabo

Lembram-se concerteza de um famoso protagonista de uma das telenovelas brasileiras mais badaladas da nossa praça, encarnada pelo actor Lima Duarte e que ficou conhecido por Zeca Diabo?... Pois é, na nossa aldeia também tínhamos um Sinhozinho Malta (estou certo ou estou errado?). Era nem mais nem menos que o António Bonifácio. Ora este nosso amigo, em tempos que já lá vão, tentou a sua sorte nas longínquas terras de Vera Cruz, seguindo uma tendência migratória daquela época, que se direccionava quase na sua totalidade para as pampas sul americanas (Venezuela, Argentina e Brasil). Como quase todos os nossos conterrâneos emigrados para essas paragens, não foram bafejados pela árvore das patacas e depois de alguns anos na diáspora, regressaram desiludidos ao lar que os viu nascer.
Lembro-me da sua chegada à aldeia, todo enfatuado de preto, camisa branca e a grossa corrente do relógio de bolso a baloiçar no colete bem apertado. O falar abrasileirado causava-nos admiração e até pegou a moda na aldeia de usar alguns termos que eram corriqueiros no parlapiê do “cara” António Bonifácio.
Sempre fanfarrão e repleto de histórias surpreendentes , a pouco e pouco se foi revelando que o homem além das magistrais vivências humanas e das pitorescas aventuras que nos deliciavam e nos deixavam de boca à banda, nada mais trazia que a vontade de viver pacatamente e aplicar as parcas economias amealhadas, na cultura de sobrevivência aproveitando e tentando melhorar os pouco haveres deixados na sua terra. Ora, nas conversas entre amigos, o dito gabava-se que desde latifundiário, domador de feras, hipnotizador de repteis, caçador de todo o tipo de animais selvagens, possuidor de poderes especiais que lhe tinham sido passados por um famoso pai de santo lá do Seara, que incluíam conhecimentos de males de coluna, ossos, torcicolos, eu sei lá, uma panóplia de profissões que ninguém lhe passava a perna em termos de sabedoria e conhecimento cientifico. Um espectáculo!...

I- O Endireita

É nesta qualidade de osteopata/endireita que vou assentar esta narrativa simples em bem humorada. Diz o povo e com razão, que nas horas de aflição e desespero nos agarramos a qualquer centelha de esperança, venha ela de onde vier. Foi o que aconteceu com o meu primo Zé Paulo, que embora sabendo da fanfarronice do dito, quando se viu apertado tentou a sua sorte. Quem conhece o Zé Paulo, sabe bem que é um rapaz calmo e ponderado, sempre a peneirar com perfeccionismo tudo o que idealiza e concretiza. Nessa tarde de domingo com a pressa de ir para um qualquer bailarico, foi má conselheira e apertou de mais o acelerador da sua estimada Zundapp. Esta estranhou tal atitude e não foi de modas, e malhou-lhe com o costelado no chão!...
Além de uns arranhões de pouca monta, ficou-lhe um nódulo na cota da mão, que lhe provocava algum incomodo e esteticamente não era nada animador. Depois de muitas pomadas e mesinhas o nódulo resistia e não houve outro remédio senão ir consultar o parecer “sábio” do mestre Bonifácio.
No dia 24 de Dezembro, depois da consoada e após termos aquecido as mãos na fogueira natalícia no adro da igreja, lá vamos nós sorrateiramente até ao largo do Oitão onde ficava a pequena casa do dito. Estava uma noite típica de Natal: um frio de rachar e um escuro cerrado que não se via um palmo à frente do nariz.
- Oh ti António!...
- Entre. Quem é? Respondeu com voz rouca e pigarreada pelo fumo do Kentucky ou mata ratos ou arrebenta barrocos, como esta marca de tabaco era conhecida pelos mais novos. Lá entrámos, meio a medo, e só a luz mortiça da candeia a petróleo, pendurada nas lares nos indicou onde o “mestre” se encontrava.
- Um bom Natal, oh ti António! Dissemos em uníssono.
- Para vós também!... Olha chegai-vos à fogueira, que é para o que está bom!... Com um bom copo e uma cigarrada, não podemos pedir mais!...
Após algumas trivialidades, o Bonifácio disparou:
- Então o que é que vos traz por cá, oh rapazes!...
Timidamente o meu primo lá explicou que tinha caído da mota, que tinha ali um alto na cota da mão, que não havia meio de desaparecer…
- Mostra cá isso, disse ele em tom vigoroso levantando-se do banco. E tu, chega aqui a candeia para eu ver melhor o que se passa.
Dito isto, agarrou bruscamente no pulso do meu primo e pespegou-lhe a palma da mão contra a parede cheia de felugem. O Zé nem ai nem ui!... Eu cheguei a candeia para junto da mão, enquanto o Bonifácio observava, apalpava e repalpava e depois de duas baforadas de fumo que lhe saiam pelo nariz e sem largar a mão do meu primo, atirou célere o veredicto:
- Oh rapaz, eu compor componho-ta, mas primeiro tenho que a partir toda!...
Como se fosse atingido por um raio, a mão do meu primo soltou-se e num repente já estava à porta da rua gritando por mim. Eu meio aturdido pela cena, avancei em passo acelerado com a candeia pela casa abandonando-a em cima da arca do centeio que estava à entrada da porta e pernas para que vos quero!...
Embrenhado no escuro só ouvia os palavrões do Zé Paulo:
- Filho da p…, parte-me a mão mas primeiro parto-lhe eu as trombas!...
De tal maneira o diagnóstico ficou celebre que ainda hoje quando nos queixamos de alguma entorse ou coisa similar, logo vem a sentença: eu compor componho-to, mas primeiro tenho que o partir todo.

Autor: Joaquim Amaral

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