sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

História da nossa gente de outras eras

A lua levantou-se calma sobre as estrelas, cheia e brilhante, deitada num tapete azul-escuro, beijando as canas e os arolos do milho que mulheres e homens descamisavam em frente ao “tronco”.
Rapazes e raparigas daquele tempo, adoravam ouvir o ti Manuel Gaspar pai de Josefa Maria Pereira, um contador de grandes galgas, só ombreado no feminino pela tia Sebastiana, também com fama de grande aldrúbia. Já com a alvura de muitos Invernos, o ti Gaspar gostava de ter rapazes e mulherio à sua volta dando-lhe o briol da casa e contando, de forma séria, exageradas façanhas que faziam rir as pedras da calçada.
Rapaziada! Ontem mandei fazer uma caldeira ao ti António cigano e não é que passa uma ave tão grande, tão grande, tão grande que o homem fez a caldeira à sombra das asas do pássaro que passava! A seguir todos riam a bandeiras despregadas com a esparrela.
- Grande pássaro esse ti Manel gracejava a Maria Ana.
- Na volta se calhar era um milheiro ti Manel! dizia o Manuel Joaquim a rir.
– Venha daí mais um copo dizia o António Justino.
Todas aquelas narrativas afinavam a fantasia de qualquer jovem e tinham o dom de facilmente transportar as crianças para um mundo mágico.
Oh ti Gaspar, conte lá como conseguiu caçar cinco perdizes e uma lebre só com um tiro, pedia a Ascenção Ana!
Ohme essa! Pois foi muito fácil! Um dia fui à caça ali para os lados dos moinhos, enquanto fui “armar a trápa à raposa”, deixei a lazarina debaixo de uma giesta. Sem saber, um verdugo entrou-me num rufo para dentro do cano da arma. De repente passa por mim um bando de perdizes e eu não faço mais nada, agarro na reluna que estava escarvada e tau, um tiro fora! Atirei uma chumbada ao bando. Ora nisto saiu também o verdugo que como um mangual doido, largou às sarabandas pelo meio do bando, vergastou e deitou abaixo cinco perdizes. Por sorte uma das perdizes foi cair em cima da cabeça de uma lebre que estava acaçapada na lora e estrafego-a também. Foi uma das melhores caçadas da minha vida.
Todos riram mas o ti Gaspar mantinha-se sério em sinal de superioridade. Pensa-se que ele não acreditava naquela e noutras façanhas fantásticas, mas que usava habilmente a sua fantasia para atrair os jovens para a sua beira!
E continuava ...
Sabes que uma vez, andava eu ali para os lados da Galafura, perto do talefe, era já lusco fusco, não é que um cabrão de um lobo me veio abucanhar uma cabra pelo cachaço, ali quase nas minhas barbas! Com catano, tinha um cacete de marmeleiro nas unhas, pus-me ao lado da cabra em posição de cernelhe, afinfei-lhe uma valente bordoada no lombo que o fez borrar todo e obrigou-o a largar a carniça. Quando ele ia a fugir, acagaçado de medo, atirei-lhe o cacete que tinha nas mãos, que quase parecia a moca aqui do meu lagar e não é que o brejoeiro se foi enterrar mesmo no meio das nalgas do lobo?! Pois é, e a história não fica por aqui! No ano seguinte vi esse mesmo lobo, mas em vez de vir com o fueiro espetado nas nalgas, trazia todo vaidoso, um pequeno marmeleiro cravado, onde o lombo muda de nome, cheio de folhas e já com dois grandes marmelos maduros!
Oh ti Gaspar isso é que foi pontaria - dizia a Emília Monteiro perdida de riso!
Então e os marmelos estavam no marmeleiro ou estavam no meio das patas do lobo! - Dizia a Rita Monteiro a rir.
Novamente todos se riram, mas agora da brejeirice da Rita.
E as histórias assombrosas e intermináveis do ti Gaspar continuavam noite dentro.
Num nítido sinal de superioridade assumida o ti Gaspar nunca ria das suas façanhas já que a seriedade sempre foi irmã do poder e daquilo que as pessoas julgam ser verdade.
- Bem rapaziada, posso gabar-me que tenho a junta de bois mais valente de todas as redondezas. Andava a lavrar muito bem uma terra centeeira ali
nas Eiras e não é que os bois me fogem com o arado para cima da eira. A rêlha enfiou-se bem fundo na pedra, mas pensais que isso fez parar os meus bois? O Possante levava a meia correia e assim mesmo deixaram um rego na pedra do tamanho de dois palmos.
Todos riram da imaginação do ti Gaspar pois sabiam bem que o homem não tinha bois e apenas duas vacas e que o rego que de facto existia na eira das Eiras, era um sulco talhado na pedra e estava lá desde o início dos tempos.
- Então, já que estão a gostar, ainda vos conto outra, sobre os meus bois!
- No ano passado fui vender o pão à praça da Guarda, com o chedeiro carregado de cagulo a fazer uma chiadeira infernal, passei por muitas terras deitado em cima do lombo do Possante, que levava a meia correia. A gordura do boi era tanta que eu ficava enterrado nela, e as pessoas nas aldeias por onde passávamos diziam pasmadas:
- Que rica junta de bois que aqui vai e não levam lavrador!
- E eu respondia lá de cima: Deixai ir os bois que cá vai quem os toca!
A gargalhada foi geral!
- Depois de chegar à praça da Guarda, ali uns do Manigoto, como não conseguiam o preço que eles queriam, deitaram fogo aos sacos do centeio, mas depois Deus castigou-os pois não tiveram colheita nos três anos seguintes e ainda tiveram que pagar a renda ao patrão que soube da queima do grão na praça da Guarda. Nesta época de tanta miséria, estavam mesmo a pedir o castigo de Deus.
E de repente toda a gente ficou séria e concordou com o ti Gaspar, com acenos de desagrado.
E logo de seguida o António Paulo pediu:
-Oh ti Manel conte lá aquela da raposa manhosa!
-Outro dia fui à corte que tenho nas Lajes Pintas que está encostada ao barroco grande, onde costumo deixar os borregos para serem vedados.
Abri a porta e escancaro com quatro borregos mortos e a gaja estendida no chão.
- Acontece que a raposa encarrapitou-se pelo barroco acima e entrou por uma nisga do telhado e depois pulou lá para dentro e matou e comeu nos cordeiros até se fartar.
Ajudengado, fartei-me de praguejar e até berrei:
- Grande puta, não bonda o que comeste, ainda me mataste os borregos, ainda bem que rebentastes!
- Nisto agarrei no rabo da raposa, que me parecia que tinha perdido o cheadoiro e atirei com ela para a rua. Oh pernas para que vos quero!
- Quando ela se encontrou livre, levantou-se a catrâmbiar e era ver a desalmada a correr pelo meio do restolho, que até parecia que lhe saía fogo pelo traseiro. Fugiu para os quintos dos infernos e nunca mais a vi!
- Com catano, nunca nenhum machacaz me engazupou como esta raposa!
E quando a lua já ia alta o ti Gaspar, já pingado como os demais, dizia:
- Bem rapaziada vamos mas é para o vale dos lençóis que amanhã é dia de trabalho!
Depois com a brisa a soprar dos lados do Freixo, ouvia-se o uivo dos lobos, talvez lá para o Vale do Pombo, um som triste e medonho que cortava a noite e desafiava o mais afoito, só amenizado pelos sons calmantes e próximos dos grilos e dos “lopes”, que ontem como hoje embalam as noites quentes da nossa aldeia.

Fonte: Notícias do Carvalhal
Autor: António Almeida Matias

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