quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Conto de Natal


Nas pedras escalavradas da rua, a neve caía em flocos alvos e grossos há mais de três horas. O Ti António, com a sua idade avançada, contemplava, com os olhos embaciados de tristeza e encostado aos vidros da pequena janela do seu quarto da cama, os campos ao redor, já branquinhos como lençol do bragal de noiva casadoira.
Já há setenta anos, tantos quantos ainda retinha a sua memória, que não caía um nevão assim, tão grande, precedido por um frio glacial. A água gelara há mais de uma semana no chafariz da Lameira e no poço da Olga do Navalho. O nabal, ali bem perto de casa, ficara num ápice completamente branco. Os pinheiros da encosta da Galafura estavam dia e noite a rugir, sempre ameaçadores, tal era a intensidade e força do vento.
Decerto, iria ser um Natal bem frio. E o bom ti António, de cabelos brancos e tez enrugada, tinha todas as razões para andar com o coração gélido. E, dizia de si para si, com amargura e nostalgia:
- Ai Manel, Manel, meu único filho, nem pelo Natal te lembras deste pai velhinho e de tua mãe que continua entrevada numa cama desde o dia em que viste a luz do dia naquele amaldiçoado hospital! Tu nasceste robusto, a tua irmã gémea vinha já nado-morta e a tua mãe, só não deu a vida por ti porque Deus não lha aceitou. Mas, ela, Manel, deu a saúde e a alegria de viver por ti. E tu, lá tão longe, em Angola, nem escreves, nem dás novas à gente...
Entretanto, mais calmo e com as lágrimas a assomarem-lhe nos olhos encovados e baços, dizia amargurado e engolindo as palavras salivadas com a dor provocada por aquele nó na garganta:
- Talvez já estejas morto a esta hora nalguma emboscada no mato.
Com as ideias desalinhadas na sua mente, o bom do ti António voltava às conjecturas:
- Eu, quando estive no norte da França, na grande guerra, escrevia todas as semanas umas letras à minha boa mãe, que o Senhor guarde em sua santa paz. E agora, com tantas facilidades e rapidez do correio, tu, Manel, nem um postalzito escreves!
E o bom do velho voltava a olhar para o longe, lá para os lados do Azinhal, tentando atingir com o pensamento quiçá o território da Angola distante, que o filho, soldado raso, defendia com coragem e abnegação, embora ele, pai, nunca entendesse muito bem por que é que os grandes do mundo fazem as guerras e são os pequenos a sofrer e a ser carne para canhão!
Mas, alquebrado, e sem vontade nenhuma de reagir, continuava a chorar amargamente:
- Ai que Natal tão triste aí vem! Entre estas quatro paredes velhas e negras de fuligem aqui estamos dois velhos abandonados: uma já inválida há tanto ano e, eu, a arrastar-me já com muito custo. Ai que Natal tão triste aí vem! E como será o daquele filho, meu Deus?
Deixou cair a cabeça entre os braços e encostou-a às húmidas e gélidas vidraças da janela. E, assim esteve bastante templo, numa contemplação cega do infinito, talvez a sonhar, sempre a chorar...
Era já o início da noite quando batem à porta. De Pinhel tinha chegado o Joaquim Pontinha, estafeta dos correios e amigo de toda a gente, e trazia-lhe um aerograma.
-É de África, ti António! É bem capaz de ser do seu Manel.
- Ó Jaquim, então dizes que é do meu Manel? Abre-o já tu, homem. Que a mim até as pernas me tremem e as mãos se me engaranham!
E enquanto o Joaquim Pontinha tirava o aerograma do bolso interior da sua samarra, o coração do ti António batia com a cadência da sua juventude. O estafeta abriu-o e leu-lho alto, também ele a chorar de emoção: "Pai, saio hoje de Luanda. Vou de avião passar o Natal convosco. Chego ao Carvalhal dia 24. Beijos à mãe e a si. Vosso filho Manuel."
O Ti António saiu dali num ápice, foi acender a candeia, correu para o quarto a levar a boa nova à esposa. Ouviu-se um choro convulsivo de ambos, mas sabia-se já que eram lágrimas de emoção e de alegria. A mãe Sebastiana murmurava lá do seu leito: - Valeu a pena dar a saúde por aquele filho! Ao que o ti António replicava: - O rapaz saiu ao pai!
......................................................................................................................................................................................................
No dia seguinte já toda a população do Carvalhal era conhecedora da boa nova. E todos, num gesto de solidariedade e de amizade - como, desde antanho, é timbre dos naturais desta terra de boas e honradas gentes - começaram a fazer filhoses, rabanadas e outras doçarias para quando o Manel chegasse, pois, coitadinha, a Sebastiana, entrevada, não as poderia fazer. E nada faltou na mesa do Natal em casa do ti António. No Mundo inteiro não houve nesse Natal um calor humano tão afectivo, tão intenso e tão solidário como no Carvalhal.

(Conto de ficção escrito e publicado há 50 anos por A.V., filho da ti Ricardina Simões, do Carvalhal)

Fonte: Notícias do Carvalhal

Autor: Abel Virgílio Simões

Sem comentários: