domingo, 12 de julho de 2009

As nossas raízes nas brumas da história

Ao fundo a Quinta Nova e a Serra da Marofa

Descalço, pelo caminho cálido batido pelos séculos, sob um sol escaldante, vinha um menino de chapéu de palha na cabeça. Os seus olhos infantis, espelhavam todo o castanho da paisagem que o rodeava, que de vez em quando fechava e esfregava por causa da poeira branca, que as suas vacas levantavam à sua frente.
Dos dois lados do caminho, ladeado por pedras de granito cinzento, estendiam-se cearas meias loiras, ondulantes a perder de vista, salpicadas com papoilas de um vermelho vivo, e ainda, de onde em onde, manchadas de um verde pueril, que indicava que a cegada estava próxima.
Trazia a tiracolo um bornal onde sobravam apenas umas côdeas do farnel que tinha levado de madrugada. Era seu hábito repartir a merenda com o seu fiel amigo Tareco, um podengo branco de cauda levantada e enrolada que o seguia por montes e vales. Nas lapas, gostava de se empoleirar sentado a aguardar pacientemente o chamamento do dono.
Da alma, tratava a sua tia, que lhe ensinava a doutrina cristã ao serão, à luz bamboleante da candeia de petróleo, que projectava sombras fantasmagóricas nas paredes de ripas de madeira. Nunca foi preciso utilizar a “menina-de-cinco-olhos”já que o miúdo tinha a memória própria das crianças, decorava literalmente tudo o que a sua tia lhe ensinava, sem perceber patavina do que ela dizia.
Foi também à luz dessa mesma candeia que leu a Morgadinha dos Canaviais, o Amor de Perdição, o Amor de Salvação e outros que um senhor estrangeiro muito rico mandava para as aldeias em carrinhas Citroen. Caloust Gulbenkian, era um nome quase impronunciável, mas ao mesmo tempo mágico. Aquele nome significava a única forma das pessoas lerem livros naquele tempo. A carrinha era sempre aguardada, com grande expectativa, tinha muitas prateleiras cheias de livros onde os miúdos e alguns adultos entravam e depois levavam, para ler à lareira nas noites longas de Inverno. É difícil de imaginar o fascínio que essa biblioteca itinerante exercia nalgumas pessoas da aldeia. Havia, no entanto, grande parte das pessoas, que de leituras nada percebia e via mesmo nos livros uma grande perda de tempo.
- Deixa de ler já essas porcarias, dás cabo de cérebro rapaz! Que raio de vicio o garoto arranjou!
-Oh tia só mais um bocadinho!
-Raio polira o garoto. Vai mas é para a tarimba que amanhã tens que te levantar cedo, para ires guardar as vacas.
-Se o rapaz quer ler, porque raio não o deixas ler? –Saía o tio a terreiro em sua defesa.
-Então amanhã de manhã, que se queixe! –Dizia a tia, enquanto retirava das lares, por cima do mourão, a caldeira da vianda fumegante e vazava a mesma para os baldes de lata onde acrescentava uma mão cheia de farelo.
Aos serões ouvia boquiaberto, através da sua tia, histórias remotas do povo do Carvalhal; as previsões do tempo do Ti Torto, as histórias inverosímeis do padre Zé das Cinco Vilas, as bizarrias do “ti” Manuel Gaspar pai da tia Coelha, as narrativas do “ti” Sebastião Gaspar, e do “ti”José Gaspar que morreu em Vale de la Mula e ainda a incrível história de Júlio da Costa o presumível assassino de Sidónio Pais.
Muitas pessoas do Carvalhal na década de trinta, organizavam-se em ranchos de doze foices, dois ou três “manageiros” à razão de um para seis foices e um ou dois garotos das foices, que tinham por função, transportar as foices e distribuir água fresca ao pessoal com barris de barro, que guardavam em local fresco. Iam ceifar, ou cegar como se dizia, para o Milheiro, Bizarril e apara outras aldeias ali nas encostas da Serra da Marofa.
Júlio da Costa, antigo sargento de cavalaria, um homem meão na altura, de aspecto robusto, aparentava 40 anos, falava fanhoso, era pessoa culta, pelo menos para os padrões da época, ensinava os miúdos a ler e a escrever por terras da Marofa, e em troca as pessoas das aldeias da Quinta Nova e do Milheiro, davam-lhe de comer e beber, davam-lhe roupa para se vestir, enfim, cuidavam dele. Tinha por hábito bizarro de dormir no cemitério, pois, segundo ele, ninguém o iria aí procurar. Gostava de falar com o António Pedro, rapaz das foices do Carvalhal e um dia contou-lhe a seguinte história:

-Sabes meu rapaz, fui eu que em 14 de Dezembro de 1918, acabei com a vida desse porco do Sidónio Pais e se eu hoje estivesse em Lisboa, o “botas” que está no poder, já não era vivo.
Deram-me primeiro como doido, depois estive preso, mas consegui fugir da prisão do Aljube com a ajuda de uns camaradas da maçonaria e trouxeram-me até aqui perto numa camioneta de um amigo aqui da zona.
-Ouve lá António, tu sabes quem foi Sidónio Pais?
-Não senhor, mas já ouvi falar.
-Então eu vou-te contar a história, disse Costa ao sentar-se numa mó de granito que por ali havia.
-Após o 5 de Outubro de 1910, quando foi implantada a República!
-Isso sabes não é?
-Já ouvi falar! –Respondeu o miúdo com alguma insegurança.
-Sidónio Bernardino Cardoso da Silva Pais, nasceu em Caminha a 1 de Maio de 1872 e morreu no Rossio em 14 de Dezembro de 1918, por volta da meia noite. Foi Ministro do Fomento, das Finanças, embaixador de Portugal em Berlim e Presidente da República.
-Desde de 1910, torna-se senador , fazendo parte do Ministério do Manuel da Arriaga. Esteve em Berlim como embaixador e regressou em 1916. Em 1917 liderou um movimento para derrubar o Governo de Afonso Costa.
Sidónio demitiu o então Presidente Bernardino Machado e tomou conta do poder. Esse energúmeno fez-se eleger Presidente da República nas eleições de Abril de 1918 sem respeito nenhum pela Constituição de 1911.
-O que é a Constituição e o que são as eleições? –perguntou António Pedro curioso!
-A Constituição é a lei suprema da nação. Todas as leis e todos os poderes a devem respeitar. As eleições são o processo pelo qual o povo escolhe quem nos governa. Quando não há eleições dizemos que o povo vive numa ditadura.
-Continuando, esse tal pulha instaura uma ditadura depois de ser eleito, em que vários jornais monárquicos, republicanos, socialistas, católicos, anarquistas ou independentes foram suspensos. Foi um tempo de repressão e perseguição política, grande confusão, com um único objectivo: fazer com que Portugal não participasse na Primeira Grande Guerra e construção de uma nova ordem, a chamada “República Nova” baseada na mística do chefe. Uma cópia antecipada e carunchosa desse maldito que está no poder agora, o “botas” esse ladrão dos infernos do Salazar, amigo do Hitler da Alemanha, do Franco aqui da vizinha Espanha e do mestre deles todos, o italiano Mussolini esse chanfrado que pensava que voltava a ter o poder dos imperadores da Roma antiga.
-E quando eu andava pelo Alentejo, quando saí da tropa, o porco do Sidónio mandou a Guarda carregar contra trabalhadores que estavam em greve, morrendo várias pessoas, que não fizeram mais do que manifestar-se pacificamente,
António Pedro, de repente lembrou-se que o “ti” Matias do Carvalhal deveria ser Sidonista, já que em 1918, desertou do exército, pois fugiu do embarque para França e andou fugido pelas matas do Carvalhal, para não ser preso, à mercê da mãe Josefa Coelha, que lhe levava comida e outros haveres.
-Oh Sr.Costa o que é um ditador? –perguntou António Pedro um pouco estonteado pelo relato. Para ele não era nada do outro mundo, pois o que era aquilo ao pé das façanhas do Ti Gaspar, que se gabava de ter uns bois tão valentes, que um dia, quando andava a lavrar ali para os lados das Eiras, fugiram-lhe da arada, e fizeram um grande rego no barroco da eira?
-Meu rapaz, a ignorância do povo também faz parte da estratégia deste facínora do Salazar – agora num tom mais afável com o miúdo.
-Um ditador é um homem ruim, um homem que não respeita os outros, um homem que tortura, um homem que não quer eleições e quer mandar em tudo e em todos.
-Repara o que eles me fizeram na cadeia – e ao dizer isto tira as botas e as meias que estranhamente não estavam rotas no local dos dedos como as do seu tio e mostra todos os dedos dos pés sem unhas.
-Repara nas minhas mãos, arrancaram-me as unhas, uma por uma, lentamente, com um alicate depois de me amarrarem! Depois esperaram que voltassem a crescer e voltaram a arrancá-las pela segunda vez!
-Queriam saber quem me tinha pago para matar o porco do Sidónio, mas nunca lhes disse!
António Pedro, impressionado, olhava para as mãos e pés do homem com os olhos esbugalhados.
-Os malditos pensaram que me dobravam pela dor e por me manterem numa cela com água até aos joelhos durante dias a que perdi a conta, mas enganaram-se!
-Mas quem foi que lhe fez isso?
-Foi a PIDE a mando desse ditador que nos desgoverna.
-Deve ter doído muito! – Disse António Pedro fazendo uma imitação de esgar de dor.
-Nem tu imaginas miúdo! Respondeu Costa com os olhos muito abertos.
Já ouvi falar ao meu tio na PIDE. Ele não ouve o rádio na aldeia vai à noite para a ribeira, para o meio dos amieiros, ouvir o Portugal Livre, em determinados dias e diz à minha tia que é por causa da PIDE.
-Eu sei disso, eu conheço muito bem o teu tio, ele também ouve o rádio Tirana e a Rádio Moscovo! Ele também fazia parte dos ranchos que vinham para a ceifa aqui para os lados da Marofa.
E as histórias do assassinato de Sidónio Pais não ficavam por aqui. Contava ele também a seguinte história:
-Quando estava a cumprir serviço militar em Coimbra, eu, no comando de quatro praças, tínhamos ordens para remover o túmulo da Rainha Santa do Convento de Santa Clara, para aí fazermos uma cavalariça. Por mais força que os soldados fizessem com as alavancas de ferro, o túmulo não esboçou qualquer movimento, então eu irritado disse:
-Se não sai inteiro sai aos bocados!
E então ouve-se um a voz forte e muito límpida que sai do centro do túmulo!
-Nem sai inteiro, nem sai aos bocados!
Até me arrepio todo quando conto isto, dizia com a sua voz fanhosa, os soldados caíram inanimados e eu nunca mais quis saber de entrar naquele local.
Deste homem conta-se, que foi a pé para Lisboa e chegou mesmo a visitar a mulher e dois filhos no Vale de Santiago no Alentejo, onde foi pessoa de algumas posses. Em Lisboa, foi novamente detido, cumpriu pena e acabou por morrer louco em 1946, com 52 anos no Hospital Miguel Bombarda.
Será que este homem que se cruzou com os ranchos do Carvalhal por terras da Marofa, que ensinou na Quinta Nova as primeiras letras a Alípio Caetano já falecido, seria de facto o verdadeiro assassino do Presidente Rei?
Fonte: Notícias do Carvalhal
Autor: António de Almeida Matias

Sem comentários: