terça-feira, 24 de março de 2009

Tentação.


No início da primavera era normal os rebanhos deixarem de dormir nas cortes dentro da aldeia para dormirem nas malhadas que se montavam nas terras de sementeira, como forma de serem estrumadas para mais tarde darem boas colheitas.
A malhada nessa altura estava montada nas terras do ranhadoiro e era para aí que diariamente o pastor conduzia, à noitinha, o seu rebanho.
Era preciso levar a ceia à malhada para o pastor e muitas vezes a missão recaía no garoto que na altura frequentava a escola primária.
Cestinha bem aconchegada, dentro um boa marmita de leite migado, umas batatinhas cozidas bem azeitadas, um tranqueiro de pão centeio, uma colher e um garfo, sem guardanapos, que era luxo desconhecido e a tapar, um paninho que escondia o manjar possível, que a mãe destinava ao filho mais velho encarregado de ser pastor.
- Vá, não te demores, que já é tarde e o Manel já deve estar com fome, disse-lhe ela, dando-lhe a cesta para a mão.
A noite já se aproximava galgando as ondulações da cozinha do Azinhal e os altos de Valverde, quando o pequenote, descalço e de pé leve, contornou o simagral em direcção ao calvário.
Ainda não tinha passado as cortes do Simagral e já a tentação era grande; a sua ceia não tinha sido farta e o estômago dava os primeiros sinais e os primeiros avisos.
- Não, não posso, não devo, ordenava-lhe a razão
- Então não achas que a carga ficava mais leve se desses umas entraditas na marmita do leite, murmurava-lhe a tentação.
Olha para a frente, olha para trás e não vê ninguém. Pára, pousa a cestita, retira o paninho e ali estava a marmita cheia de leite, bem provocadora aos seus olhos e ao seu estômago.
- São só umas colherinhas, ele não vai notar e, sofregamente, lá foram para a goela duas ou três colheres de leite.
Retoma o caminho, o calvário ficava à sua retaguarda e tinha chegado à encruzilhada; para a direita seguia o caminho principal, torneando ligeiramente à esquerda, descia-se a quelha que levava à gorgulicha.
Era altura de descansar e decidir qual o melhor caminho até à malhada.
O escuro iniciava o seu assalto envolvente ao horizonte e o garoto bem sabia que os tropeções nas pedras seriam bem menos se seguisse o caminho principal; porém, uma voz interior continuava a ruminar-lhe a consciência e a chamar-lhe parvo se não soubesse aproveitar o descanso e dar mais umas colheradas na marmita.
- Que se lixe!
Era mais tentador que qualquer maçã que Eva tenha colocado ao alcance de Adão, vai daí, abre a marmita e toca de meter a colher. Vai uma, vão duas, vão três e a razão a insistir para se controlar.
Qual quê! A marmita já dava sinais evidentes de esvaziamento mas, tal como o vício incontrolado, lá vão mais umas colheres em favor de um estômago que teimava em não dizer não.
Depois de ter caído pela segunda vez, deslizava caminho abaixo, com as vinhas do Senhor da Piedade para trás, quando pensou:
- É a ultima vez, a malhada está próxima e se o pastor me vê ou os cães dão sinal, já não posso voltar a dar as minhas colheradas e, se melhor o pensou, mais rapidamente o fez. Ao seu lado esquerdo ficava o lameirito do cimo do ranhadoiro, sentou-se junto à carrasca e toca de abrir mais uma vez a marmita.
Que delicioso aquele leitinho para um estômago ávido de o acolher.
Colher atrás de colher, até que um forte arrepio lhe atravessou a coluna
-E se ele descobre?
- Que trepa tu vais levar!!!...
Ideia genial, uma parte do que restava, toca de ser espalhado pelo fundo da cestita e assim sempre se arranjava um álibi; afinal a mãe fechou mal a marmita e com os balanços da corrida o leite derramou-se quase todo no trajecto.
Montada a justificação, dirigiu-se a passos largos em direcção à malhada.
O Manel esperava já faminto pela ceia e rapidamente pegou na cestinha para poder beber o leite e comer as batatitas.
Quando abriu a marmita ficou siderado, mas a explicação dada pelo irmão pareceu-lhe credível.
Bebeu o restinho que tinha ficado e, não fossem as batatas, teria passado uma noite esfomeada.
O garoto, por sua vez, não dormiu em toda a noite com remorsos do seu acto; mas, que fazer?
A tentação tinha vencido a razão.

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