domingo, 18 de janeiro de 2009

20 de Janeiro

O ti Paulos de bigode farto e risada estridente, ainda mal raiava o sol e já ele iniciava a alvorada ao som de morteiros e foguetes de resposta.
A festa ia ser rija.
Meia manhã e mais uma saraivada de fogo, a música estava a chegar e iria percorrer as ruas da aldeia; mestre da música em frente e todos os instrumentos entravam em acção. Se os músicos mais inexperientes desafinavam ninguém reparava.
Pórrópópó, tchim, tchim, pórrópópó, tchim, tchim, entram clarinetes e trompetes, secundados pelos pratos e cadenciados pelos tambores. A banda, como que ensaiando uma marcha militar, lá subia a rua principal; à sua frente, os mordomos e, logo atrás, a pequenada ávida de barulho e alegria. Os foguetes continuavam a estalar no ar anunciando aos habitantes dos povoados em redor que era dia de festa no Carvalhal.
As famílias esperavam os seus convidados; tios, primos, sobrinhos; que naquele dia, a pé ou de burro, raramente de veículo a motor, vinham chegando da cidade ou aldeias próximas para assistirem à missa e confraternizarem num almoço de família onde não faltaria o borrego e o cabrito. Festa é festa e naquele dia as famílias tinham o direito de ser ricas e comer como se estivessem à mesa do rei.
O sino, entretanto, anunciava o início da missa e, era ver as mais beatas em loucas correrias até à igreja, não fosse o senhor padre reparar no seu atraso, só possível pela azafama de preparar os melhores bolos e os melhores guisados para o almoço.
A homilia, para os garotos, um enfado, até que os mestres de cerimónias Joaquim Oliveira e outros e o sacristão Amadeu Justino iam entregando os diversos estandartes e imagens que iriam percorrer a aldeia em procissão, com o estandarte do padroeiro S. Sebastião à frente de todos os outros.
Naquele tempo em que a aldeia ainda não estava inundada de fios e postes de electricidade e a iluminação era à base de candeias e candeeiros a petróleo, dois estandartes de grande porte eram transportados por alguns jovens mais robustos que dando ar de garbosos faziam questão de mostrar a sua virilidade no seu transporte. As longas varas dos estandartes encimadas com imagens muito grandes faziam arrepiar muita gente quando alguma rabanada de vento as fustigava e logo o porta estandarte era socorrido por outros rapazes que se mantinham sempre atentos e dispostos a ajudar o porta estandarte que estivesse em apuros. Recordo o Joaquim Amadeu como um dos mais fortes que fazia questão de levar o estandarte o mais tempo possível.
A procissão lenta onde se iam entoando cânticos de louvor, percorria a aldeia com o padre protegido pelo palio sempre transportado pelo senhor regedor Joaquim Aurélio e a banda, lá ia mais ou menos afinada, tocando sempre as mesmas músicas e batendo os pratos, marcando compasso. Os foguetes iam estoirando e muitos garotos percorriam as regadas completamente enlameados na apanha das canas. Recordo o Paulo da Maria Águeda e o António Lourenço que iam a todas, depois era ver a Celeste e a Maria Águeda a quererem enchalmá-los por terem sujo as roupinhas domingueiras que vestiam.
Acabada a missa todos se dirigiam para o largo do forno onde se arrematavam as janeiras. Enormes varas carregadas de chouriças, pés de porco, farinheiras e outros enchidos eram expostas pelos leiloeiros que ao ritmo de, lá vai uma, lá vão duas e lá vão três, as iam entregando àqueles que mostravam ter a carteira mais recheada e as arrematavam. Era sem dúvida um ponto alto da festa, o momento das arrematações. Os leiloeiros colocavam-se em cima do muro do pio, que na época estava localizado no centro do largo, e uns atrás dos outros, iam vendendo as janeiras, com as receitas a reverterem para os santos que, digo eu, naquele tempo deviam ser muito mais ricos do que hoje.
As famílias recolhiam às suas casas e depois do belo banquete, depois de bem comidos e melhor regados, pouco a pouco iam-se concentrando na casa do povo, onde os primeiros acordes do acordeonista "o russo" já se iam ouvindo, a prometerem baile de arromba.
O salão de baile ia-se enchendo, e passado algum tempo não se rompia lá dentro, com a rapaziada na conquista das miúdas mais ágeis na dança ou mais atiradiças no meter da perna, com os mais velhos de atalaia, principalmente as mães, que tinham sempre as filhas de baixo de olho, não fosse o entusiasmo próprio da festa extravasar para cenas mais ousadas e expressamente proibidas à época.
Dançava-se o corridinho, o vira e não faltava o fandango, onde alguns mais velhos sempre faziam questão de mostrar aos mais novos que a dança não é só divertimento mas também uma arte; que o dissesse o António João quando pegava na sua dama e repenicava o sapateado no fandango sempre em sintonia perfeita com os acordes vindos do acordeão. O russo, assim era conhecido o brilhante tocador, natural da Benquerença, concelho de Penamacor, quando as horas iam passando e as garrafas de cerveja se iam acumulando a seus pés, por trás de umas lentes muito graduadas ia arregalando os olhos e cantando, cada vez mais desafinado, em sinal de que a festa se aproximava do fim.
O petromaxe iam perdendo brilho, o que indicava que seriam altas horas da noite. As raparigas embrulhavam-se nos xailes das mães e, toca para a caminha, onde iriam tecer fantasias inconfessadas. Os rapazes, alguns de asa caída devido ao excesso de grão, continuavam a festa percorrendo adegas até ser outro dia.
No ano seguinte a festa iria voltar.
 

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