sexta-feira, 15 de maio de 2009

A feira de Maio


O Delfim foi à feira de ano de Pinhel. Era no 1.º de Maio. Vinha do Carvalhal e nunca tinha visto tanta gente junta, nem nunca tinha apanhado tantos encontrões! Começava a andar já aflito no meio da multidão, ele que era ainda pequeno e aquela “gentiaga” tão forte e tão alta! Apertava bem a mão da mãe não fosse perder-se no meio de tanta gente. Aos poucos deu-lhe para perder o medo porque começava a observar coisas que nunca tinha visto: tendas e mais tendas com bancas cheias de coisas bonitas e casas e árvores a dar sombra a toda a volta.
Na feira tudo estava espalhado: nas bancas dos feirantes, no chão em cima de toldos e de panos, cobertores e mantas de várias cores. Aqui viam-se vendedores de roupa, que vendiam samarras, peliças e fatos de homem; acolá era a mulher das louças, a vender pratos, copos e jarras de vidro; mais adiante eram sapateiros que vendiam tamancos, sapatos, botins e botas. E as pessoas pegavam em tudo, perguntavam o preço, experimentavam para ver se lhes ficavam à medida, e depois ou mercavam ou voltavam a pôr tudo no seu lugar, dizendo apenas “não me serve” ou “é caro para a minha carteira!”.
- Anda Delfim, caminha, não fiques aí pasmado, dizia-lhe a mãe.
Um homem, em frente à loja do Zé do Cantinho, vendia realejos, cornetas, canivetes e pentes. Aí parou o Delfim, embevecido a olhar para aqueles objectos… Ó mãe compra-me uma navalha?
– P’ra que queres tu a navalha? Não, compro-te outra coisa.
– Um realejo? Suspirou o Delfim, que queria o canivete para fazer bonecos e arados dos paus de faia, e o realejo para tocar ao desafio com os melros e os rouxinóis lá no Vale do Pombo ou na Olga do Navalho. Mas a mãe não lhe comprou aquilo. Só parou na tenda dos sapateiros, e aí sim, a mãe decidiu comprar-lhe uma botas com rasto de pneu dos automóveis, que estrearia no dia em que voltasse a Pinhel, trazido pela professora, Dona Aurora, para fazer o exame da quarta classe. O Delfim experimentou-as, a mãe apertou-lhe os atacadores meio ensebados e a feirante perguntou:
- O menino dê um ou dois passos e veja se lhe doem! Só com medo que a mãe lhas não comprasse o Delfim disse que estavam boas. E a mãe comprou-lhe aquele par de botas.
Depois, quando já no largo da cadeia, viu a tenda dos brinquedos ao longe, só teve um desejo: de ir lá ver aqueles brinquedos todos. Mas teve sorte. A madrinha, que vinha lá dos lados do Marco, ao avistá-los dirigiu-se-lhes para os cumprimentar, à mãe e ao filho, e disse a este:
- Afilhado, vamos ali à atenda para escolheres um brinquedo, pois na Páscoa não te pude dar a prenda e hoje quero dar-te as maias.
Pronto! O Delfim olhou para aqueles brinquedos, uns feitos de madeira, como os pássaros graúdos, assentes numa roda que, quando em movimento, os fazia abrir e fechar as asas, outros em plástico e outros em lata pintada como os carros e as camionetas. Aí decidiu-se por uma camioneta azul e amarela reluzente, com portas de abrir e fechar, e de caixa aberta. A madrinha perguntou o preço à tendeira. Esta disse que custava sete e quinhentos.
– Isso é caro demais, retorquiu aquela.
Só lhe dou cinco escudos por ela.
E uma porque queria sete e quinhentos e outra porque só dava cinco escudos, a decisão arrasta-va-se aos olhos do Delfim que o mais depressa possível queria ter a camioneta nas mãos. Por fim, a vendedora rachou o preço e disse: - Não paga sete e quinhentos, nem sete, vai pagar seis e quinhentos. E o Delfim só acreditou que a camioneta era dele quando viu tirar do peito da madrinha a bolsita onde ela trazia o dinheiro.
Pronto! A camioneta estava por fim nas suas mãos, era dele. Já só queria sair daquela barafunda da feira de ano e voltar a casa, voltar ao largo do forno, à escola da Dona Aurora, para que todos lhe vissem a camioneta azul e amarela. Mas a mãe continuava pela feira abaixo, parando aqui e acolá, passando pelo Marco, pelo Largo dos Combatentes, pelas Encruzilhadas até chegar à feira do gado. E ali o Delfim começou a esquecer a camioneta para admirar coisas de que tanto gostava: as ovelhas enfeitadas e pintadas com cores, parecia que iam numa procissão para agradarem aos novos donos; e as vacas e os bezerros deitados à sombra pareciam nos seus olhos aguardarem que os donos fizessem a sua transacção. Eis senão quando vê ali perto algo que nunca lhe passou pela cabeça: um homem que deitava lume pela boca, e que quando parava de deitar lume, colocava uma cobra sobre os ombros e gritava de forma a ser ouvido no meio daquela barulheira:
- São só duas caixinhas por três escudos! Vendia uma pomada de banha de cobra, dito produto natural que curava tudo: dores de cabeça, de dentes, das costas, reumáticas, artrites, artroses, espondiloses, micoses e mais doenças, mesmo sem serem terminadas em oses, como eczemas e picadas de bichos. E aos passantes que não acreditavam por aí além nas virtudes da banha da cobra e não lhe compravam a pomada, o vendedor repetia uma frase lapidar:
- Pode não fazer bem! Mas mal não faz de certeza; foi o que valeu às pessoas no tempo da peste, arengava ele com voz forte. Mas o Delfim não tirava os olhos da cobra. Parecia-lhe tão amiga do dono, parecia enrolar-se-lhe nos braços e no pescoço, parecia-lhe que ela estava até com medo dos outros humanos que faziam uma roda para a verem e alguns comprarem a miraculosa pomada…
Dali ainda foram até ao fundo da feira de ano.
Na caixa de uma camioneta cheia de cobertores e toalhas, uma mulher, com um microfone enrolado ao pescoço e embrulhado num lenço de assoar, gritava para a multidão:
- Venham fregueses, olhem para este cobertor, cinquenta escudos! Mas com este cobertor vai uma carrada: mais este, mais este, mais esta… E com os mesmos cinquenta escudos eu ainda ofereço um canivete e um realejo!
- Mãe compra a carrada porque assim ficamos com mais cobertores para o Inverno e toalhas para o Verão. Compra mãe.
Pronto. A mãe decidiu-se comprar uma daquelas carradas. E lá vinham o canivete e o realejo!
- Mãe já me doem as pernas. Vamos para casa …vamos.
A mãe acedeu e lá foram, cidade acima, até ao cabanal do Ti Messias buscar a burra. Ali a mãe meteu nos alforges a roupa, a camioneta, o realejo e o canivete. As botas, essas, uma presa à outra pelos atacadores, escarrancharam-nas na albarda da burra, cada uma para seu lado, esperando estreá-las no dia do exame. Mas para isso era preciso que a Dona Aurora lhe dissesse daí a um mês se ia ou não a Pinhel fazer exame da 4.ª classe!


Autora: Eneida Beirão
publicado no Jornal Pinhel Falcão

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