quarta-feira, 14 de maio de 2008

Há males que vêm por bem

Devia o catraio andar pelos seus quinze anos, idade bastante para alimentar ilusões.
Depois de alguns meses de acompanhamento do crescimento das searas pelos agricultores, quando as tarefas da monda e da adubação já eram passado, quando o centeio tocado suavemente pelo vento e bafejado pelo calor apresentava colorações entre o prata e o dourado, era chegada a altura do rancho entrar em acção para, entre uma ordem do manegeiro, um estalido de uma foice que bate numa pedra e o canto compassado das ceifeiras, se transformar uma seara num campo despido, seguido do erguer de diversos rolheiros à espera de serem desfeitos alguns dias mais tarde.
As rolas, os pombos, os estorninhos, sem esquecer os sempre traquinas e barulhentos pardais, tinham agora e durante algum tempo a mesa posta sem terem que se preocupar em fazer jogos de equilíbrio e de sustentação junto das espigas ondulantes ao sabor do vento.
Decorria o período das ceifas, dos mais novos aos mais velhos a aldeia andava num alvoroço. O rancho era composto de diversas faixas etárias, mas onde a juventude era predominante.
Cada casa dava uma ou duas pessoas à constituição do rancho, em função da dimensão das famílias e, se possível, em função dos alqueires semeados que se iriam traduzir, mais tarde, em maior ou menor número de poisas a ceifar.
Quis o destino que o Joaquim Jerónimo estivesse obrigado a ter anualmente umas das maiores sementeiras da aldeia, de cujo resultado, a maior fatia ia para o Joaquim Matias proprietário do casal, como preço das rendas anuais; logo, devia dar ao rancho pelo menos duas pessoas.
O Tónio tinha seguido o caminho da emigração clandestina, havia pouco tempo; o Manel, enfermeiro de especialidade na tropa, cumpria o serviço militar na Guiné; restava a laboriosa Maria e o chefe do clã para naquele ano fazerem parte do rancho.
Engoliu alguns dias em silêncio a mágoa de não fazer parte daquele grupo que diariamente se encontrava manhã cedo e partia para o campo; uns com o barrico às costas, outros com cântaros e barris de água; muitos deles de dedeiras penduradas no cinto e as foices embainhadas.
Não aguentava mais.
A juventude estava lá, o rancho era o núcleo da festa, onde se cantava, brincava e ria e ele tinha que passar o dia isolado tratando das vacas sem poder conversar, sem poder conviver, até que certa noite, depois de apresentar alguns argumentos, lá convenceu o Joaquim Jerónimo que tinha mais um homem em casa capaz de substituir os que tinham partido.
Porque não deixa-lo experimentar, terá pensado o pai ...
- Então amanhã vais tu e a tua irmã para o Zé Jaime.
Foi uma grande alegria e a excitação apoderou-se dele, tendo grandes dificuldades em dormir essa noite.
Manhã cedo, foi dos primeiros a chegar junto da casa do Zé Jaime.
O rancho devia começar a faina na encosta junto à ponte do Bico e entre cantares, risos e mais folia, lá foi o rancho Cozinha do Azinhal acima até chegar à seara no Bico.
Todos sabiam a sua posição, mas era preciso encaixar o novato e, porque já desconfiavam da sua real capacidade, lá o encaixaram entre o António Lourenço à frente e, na sua retaguarda seguia a Maria.
Com os primeiros ataques da foiçe no corte do centeio logo se mostrou alguma falta de capacidade de curvatura nas costas.
Afinal, a agilidade desportiva não era suficiente para assegurar a mestria de bem ceifar.
O restolho ficava alto e um manegeiro mais atento lhe diz que a foice devia ir mais junto à raiz.
A cadência do lançamento da foice ao corte não podia ser inferior à dos restantes.
Os primeiros suores começaram a apoderar-se dele ainda não tinham decorrido mais do que dez ou quinze minutos.
As costas davam já os primeiros sinais de fraqueza e já o Lourenço, apercebendo-se do seu atraso, aqui e ali, entrava nos seus regos para lhe criar umas clareiras capazes de lhe dar algum alívio.
Depressa deixou de sonhar com as alegrias de pertencer ao rancho para interiormente se chamar de estúpido pela troca que tinha feito com o pai.
O calor era agora cada vez mais intenso e o suor banhava-lhe todo o corpo.
A foice era lançada com raiva, o centeio fugi-lhe da mão esquerda pequena e não treinada. Sentia que estava longe de corresponder ao que todos esperavam de si e o nervosismo era intenso; até que, sem dedeiras de protecção, a foice deslizou em direcção ao seu dedo mendinho e só parou com um grito de dor intenso seguido do jorrar intenso de sangue.
Com um lenço logo lhe fizeram um garrote ao dedo e percebeu-se que "a baixa" não remunerada era a única saída airosa para o estreante.
Com uma dor intensa no dedo todo ensanguentado só lhe restava o abandono.
Cabisbaixo, triste e amargurado, despede-se do grupo para se dirigir ao povoado e chamar o pai que o deveria substituir.
A dor do momento foi também a tábua de salvação para um sonhador que só via no rancho o lugar da alegria, do entretenimento, da camaradagem, mas tinha esquecido a dureza da faina e a sua total falta de preparação, porque na realidade, o seu treino consistia em passear os livros de baixo do braço em Pinhel, onde as sombras da trincheira albergavam sonhos, fantasias e tempos bem mais agradáveis do que suportar o calor intenso e um ritmo de trabalho de natureza diabólica ensaiada por humanos.
A experiência foi óptima e o ataque da foice ao dedo resultou em tábua de salvação que permitiu o abandono com honra.
Lá diz o ditado:
- Há males que vêm por bem.
Resta a marca, ainda hoje visível, fazendo-lhe lembrar as suas origens.

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