sexta-feira, 23 de maio de 2008

Caçada na neve

A chuva gélida do final do dia tinha dado lugar a uma noite de luar cristalino em que as estrelas cintilavam no Universo. De vez em quando via-se o clarão intenso, mas fugaz, de uma estrela cadente e já os tamancos, deslizando em direcção à corte das vacas, esmagavam com um som estridente a geada que gretava o chão ou se acumulava sobre as ervas que teimavam em crescer na rua.
Nem parecia que o termómetro durante o dia tinha caído para vários graus negativos, tal era a serenidade da noite. Só uma ligeira aragem teimava fustigar o nariz e nos recordava que estávamos em Janeiro.
Era sempre assim. Depois da tempestade vinha a bonança, para de madrugada nos visitar e ficar por algum tempo um manto de neve que tornava a região mais encantadora.
Se tudo corresse como era previsível o próximo dia ia ser diferente.
Depois da noite dormida na tarimba havia que espreitar o exterior.
Ela aí estava límpida, fofa, dando à aldeia uma tonalidade única e deslumbrante.
A pintura, não sendo monótona, era quase monocolor, ficando por cobrir as paredes cinzentas das casas.
Aqui e ali via-se o rasto de um rato que se tinha atrevido sair de casa, de um pardal ou de um pisco que ousaram tocar o veludo, salpicando o manto com ligeiras cruzes, sinalizando a sua passagem à procura de um abrigo.
O gado não podia sair à rua e o nevão, pela sua intensidade, dava sinais de se manter por alguns dias.
Para os mais velhos era uma preocupação, havia que alimentar - vacas, ovelhas e cabras à base de rações, viandas, palha e feno, o que além de ser um custo, representava também o risco dos animais mudarem o lustro do pelo por evidente falta de elementos nutritivos, que só o campo lhes poderia dar; mas, para os mais novos representava a possibilidade de fazer algo diferente; percorrer os campos e, seguindo-lhes o rasto, apanhar alguns coelhos com a ajuda e destreza da Doninha, essa cadela que durante anos foi rainha na arte de caçar.
Botas de cano alto ou envergando polainas, embrulhados em grandes casacões, partimos em direcção aos Castanheiros para sondar as várias tocas que havia até ao Vale da Areia.
A neve estava virgem, o que nos permitia seguir qualquer rasto. Os coelhos, incautos e desejosos de procurar alimentos, davam-nos as pistas do seus percursos, facilitando a descoberta dos seus esconderijos. Logo que algum, depois de acossado, saísse da toca, era presa fácil para a equipa de caçadores que, sem armas de fogo, mas munidos de longas varas, ajudados pelas dificuldades criadas pela neve em que se enterravam em fuga e aliados à velocidade e astúcia da Doninha, em menos de duas ou três horas já transportávamos à cintura vários coelhos que iriam ajudar nos dias seguintes a melhorar a ementa da família, já que naquela época, não havendo fome a fartura era limitada.

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