Malas e sacas de batatas acomodadas, vou à janela e, num misto de alegria e tristeza, sinto-lhe o deslizar vagaroso e com dois estridentes assobios despede-se da gare. Mais umas fumarolas e já ele se embala rumo a Celorico da Beira.
Tudo era novidade.
Uma carruagem ampla com bancos corridos de madeira, ao fundo umas casotas interiores que na porta exibiam as letras WC.
Aqui é a casa de banho, disse ela, com ar de guia e mestre em viagens.
Não disse nada, mas recordei a imensidão da paisagem que se escondia atrás de um qualquer barroco na aldeia e o cubículo que me estava reservado quando a necessidade apertasse.
Ao menos descobri-lhe uma vantagem. Já não tinha que procurar umas ervas...
Ora sentado, ora de pé, com o gargalete fora da carruagem lá me ia deslumbrado com a paisagem.
Tudo era novidade.
As pontes, os túneis que surgiam do nada para logo voltar a ser dia, as vilas e aldeias nunca antes vistas.
Chanca, chanc, chanca, chanc, chanca, chanc, mais um silvo e outra estação que ficava para trás, até que, passadas algumas horas, ele queda junto a um pontão cumprido.
Era um emaranhado de linhas, locomotivas que se moviam de um lado para o outro, mais adiante passa um comboio veloz que não pára. O nome estava bem gravado na estação. Pampilhosa.
Enorme, tudo era tão diferente do meu mundo.
Gente que corria, gente que carregava malas enormes e se arrastava pelos cais e já o altifalante berrava:
-Atenção senhores passageiros, comboio para o Porto, linha 6, parte às 12.30 h.
E repetia:
-Atenção senhores passageiros, comboio para o Porto, linha 6, parte às 12.30 h
Ela, sempre sorridente, dizia-me:
-Vamos, vamos, está quase a partir...
Exaustos pela mudança, mas agora melhor sentados.
Era linda a carruagem, bem compartimentada, de bancos verdes macios, que depressa fizeram esquecer o comboio da Beira Alta.
Agora podia apreciar o que já tinha aprendido nos bancos da escola primária.
Ali estava a linha do norte, electrificada.
Partiu veloz e passado pouco tempo estava a apreciar os campos de milho infindáveis.
Tudo era verde.
Não se viam carrascas e os barrocos só os encontrava quando interiorizava e virava o pensamento para tudo o que ficava para trás - os pais, irmãos, amigos, o farrusco, a princesa, a andorinha, a doninha e tantas outras imagens que me faziam crescer um sentimento de angústia, que por vezes se escondia para dar lugar ao antídoto.
Afinal todos, pais e irmãos, uniram vontades e permitiram que o garoto franzino se libertasse daquele desterro e fosse aprender, mais e mais, para um dia mais tarde não ter que continuar a dormir com as ovelhas ao relento ou na corte das vacas, numa tarimba abafada.
Eles mereciam e merecem toda a minha gratidão.
Do lado esquerdo surgia o imenso mar que só em pensamentos o conhecia.
Tudo era lindo, tudo encantava.
A estação das Devesas já ficava para traz e eis que surge, imponente, a ponte D. Maria
Quase que parecia dormir, tal era a lentidão com que estava a atravessar a ponte em direcção ao Porto. Olhava para o Douro, a ponte D. Luis, a ponte da Arrábida, o Palácio Cristal e, pensava:
- Sou tão pequenino.
O meu Carvalhal é tão pequenino.
A Ribeira das Cabras, mesmo em tempo de cheia, é tão pequenina.
E eu que achava a cidade de Pinhel tão grande...
Depois de ter parado uns minutos em Campanhã, entra no escuro do túnel para, passado pouco tempo, se quedar finalmente na estação de S. Bento.
- Chegámos, disse ela.
E ainda mal tínhamos descido as escadas e já se aproximava de nós o António Gil que sempre sorridente e galhofeiro nos deu um grande abraço.
Transpusemos as portas da estação e vi um mundo de outro mundo. Os carros, os eléctricos, os autocarros, peões correndo pelas ruas.
Onde me vim meter, pensava eu com os meus botões e, já o António Gil me puxava pela mão para subir para o autocarro.
Depressa chegámos à rua da Boavista, calcorreamos o passeio da R. Barão de Forrester, franqueámos um enorme portão e em frente surgiu um grande largo com muitas garagens, tendo no seu lado esquerdo uma casinha, pequena, mas acolhedora. Ali estava a Maria Adelaide e o seu bébé Joaquim Gil, hoje mais conhecido pelo tripeiro e fanático do F.C.P.
Ela, que me acompanhou na viagem, jovem bonita, que já a algum tempo vivia no Porto aprendendo as artes de cabeleireira, era a Maria Amélia do António João, que tendo estado alguns dias no Carvalhal, foi a minha âncora e a minha protectora no caminho para o mundo da civilização.
O destino era o seminário que me esperava dali a dois ou três dias e onde passei três anos.
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